Ensaio sobre o "palavreado"...


O ensaio podia começar com um silogismo imperfeito. Digo imperfeito, porque este palco não se pretende filosófico. Ora cá vai: eu sou filha do meu pai... o meu pai é filho do Minho... logo, eu só posso ser filha dessa terra que tanto gosto.

Nesta asserção simples de vida, fundei toda a minha infância e juventude. Já algumas vezes, neste teatro de mim, falei das minhas recordações desses dias, que terminavam sempre, após quase um mês de férias em viagem, nas terras verdes, no coração do Alto Minho.

Quando miúda, gostava de me embrenhar pelos milheirais, saltar valados e descer o caminho até à fonte, pintando de vermelho as mãos, no apanhar das amoras que sorriam das silvas. De quando em vez, no meu sempre espantado saltitar, cruzava-me com uma dessas personagens tipicamente minhota... o rosto despontando entre o braçado de erva equilibrado à cabeça... a mão carregando a enxada que abria os regos de água. Invariavelmente, nesse falar de sotaque inconfundível, nascia a pergunta. "De quem és tu, minha menina?" E a menina lá desfiava o rosário da árvore genealógica: "Sou filha de fulano, neta de beltrano, da família "Y", ali da casa do... " Depois, seguia-se o "palavreado": "F.#&?-se, tens o sorriso da tua avó!". Ou então: "Tens uns olhos do C#&?#*!!". Confesso que, das primeiras vezes, fiquei chocada... sem perceber se o meu sorriso era uma ofensa para a minha avó... se os meus olhos lembravam mesmo... fosse o que fosse!

Rapidamente, percebi a dimensão das palavras, meras interjeições, talvez com alguma admiração à mistura. Linguajar único! Ao fim de dois ou três dias, eu era minhota no dizer de entoação própria... mas nunca fui capaz de verbalizar uma "asneira"! Até hoje. [porque, afinal, há palavras que não gosto!]

De todas as expressões que se vestem de regionalismos, ou não, havia uma que eu adorava: "Binde à minha beira!" E eu ia, apesar de não conseguir apagar do pensamento que "beira" me lembrava abismo, ou, nos melhores dias, margens equidistantes de um rio!

No entanto, a pérola deste "palavreado" natural chegava com qualquer despedida. No meu Minho, nunca houve um "até à próxima", um "adeus"... era sempre "continuação!". No pensar simples de uma menina que fui, ouvir "continuação!" era a certeza de que eu voltaria... logo... sempre... para continuar a viver na plena sinestesia do verde!

19 comentários:

arjuna disse...

... os seus olhos são muito belos, sim, Graça.

... a verbalização da "asneira", não tem hoje qualquer valor especial para as novas gerações -- deve ter reparado nisso entre os seus alunos... é algo diferente das interjeições regionais nortenhas, ou portunhas... onde se poderia elogiar um amigo dizendo: "ó seu filho da p... do c...", ou uma mãe repreender o filho chorão: "cala-te, ou levas um tapa-boca que te f..."

não atribuo valor especial ao desbragamento verbal juvenil, confesso que me choca essa forma de falar numa rapariga, mormente se empregar expressões que são metáforas de valor sexual supondo um homem como emissor, um uso agressivo da sexualidade... uma minha amiga diz que isto é uma forma diluída me machismo em mim, sentir-me "chocado" com certas expressões numa rapariga, ser indiferente a elas num rapaz...

Beijinho
~~j

RENATA CORDEIRO disse...

Gostei muito do seu post, Graça. Principalmente da "continuação". Sempre foi a palavra que eu quis que ressoasse dentro de mim, mas na maioria da vezes o retorno foi um "adeus" definitivo, sem volta. Muito bonito o seu estilo e o seu olhar.
Querida,
Fiz post em todos os Blogs, menos no Galeria e no Doces Poesias. No Tristão, imagem e citação. Espero por você

São disse...

Tanto que esses olhos atentos enxergam, Graça...
E se é como nos diz, eu sou alentejana, com orgulho e gosto.
Do Minho adoro o verde e as paisagens.
Um abraço.

Anónimo disse...

eu gosto. eu saúdo. eu vejo. eu re.vejo. eu escuto. eu leio. em plena contempação.

eu sei que este é o olhar que lê e sente. do verde ao branco. do fundo ás núvens.




adorei. este.post. tanto.



(piano)

Anónimo disse...

Li-te, minha amiga, com o ouvido atento... e foi por tanto espreitar que ouvi a tua voz... Ouvi, claramente, o teu sorriso a calar o que, às vezes, me fazes falar... como hoje, como hoje...

Beijo abraçado

Unknown disse...

eu bebo estas terras e este linguajar.


obrigada pelo ar fresco.

beijo

Anónimo disse...

O nosso Minho, Graça! Que bem o dizes... (quando vens?)

Já tinha saudades desses olhos profundos.

Bjos, querida amiga

f@ disse...

Palavreado que sustenta as lembranças… as cores e os gestos dos bons momentos…
Belo este ensaio e belos teus olhos… a melhor ilustração para o que nos contas… adorei…
Verde o Minho… tão verde que até o ar parece ter folhas… eu não conheço senão imagens…

Beijinhos

vieira calado disse...

Pois...
As palavras não podem ser divorciadas do seu contexto (neste caso, espacial).
Mas que sabe disso uma criança de tenra idade?

Agora "Algarve Ontem":

Um livro diferente, sem dúvida!

Mas do mesmo modo
de "Lagos Ontem",
2ª ed. da Câmara Municipal de Lagos.

Com fotografias de actividades dos anos 50, hoje desaparecidas, e notas históricas e etnológicas.

Mas não sei quando irá sair.

As editoras querem patrocínios, tanto mais que o livro é em papel couché e uma fotografia por poema.

Mas, provavelmente, sairá antes, uma peça de teatro...

Obrigado pelo seu interesse.

Beijinhosss

Anónimo disse...

siderado pelos teus olhos, saio.

sou...serei? disse...

O conto de uma realidade cheia de pureza e sentimento. Um conto que daria, com toda a certeza, um enredo perfeito para uma curta metragem. Um conto que com o trabalhar das palavras, como é teu apanágio, maravilhava qualquer poesia. Um conto em que a beleza só é ultrapassada pelo brilhar dos teus lindos olhos.

até

Branca disse...

Olá Graça,

Ontem vim por aqui beber estas palavras sobre o "meu" adorado Minho por onde também sempre passei as minhas férias, a maior parte delas. Conheço-lhe tão bem os cantos, alguns, porque o Minho sempre se redescobre, entusiasmei-me tanto que escrevi demais e voltei hoje para sintetizar.
Muito gostava de saber qual o teu palco Minhoto: Moledo, Vila Nova de Cerveira, Gerez, Peneda, Castro Laboreiro, Arcos de Valdevez, Ponte da Barca, Ponte de Lima ou Viana? Tantos outros sítios, todos tão belos que podia enumerar, todos tão pertinho uns dos outros, de tal maneira que quando faz nevoeiro na praia pela manhã, tens logo a poucos metros um belo rio, cheio de sol, onde te podes banhar em águas transparentes e sempre com pé, como Vilar de Mouros ou os Arcos onde a poluição ainda não chegou, penso eu, não tinha ainda chegado há meia dúzia de anos.
Então, "continuação" Graça, por cá andaremos sempre.
Por acaso nunca ouvi esse "continuação" pelo Minho, mas tenho no meu trabalho um segurança jovem que mo diz todos os dias quando saio, por isso não temho muito a certeza se isso é um hábito do Minho ou de algumas pessoas ou famílias do Norte. Ao longo da minha vida ouvi-o por estas bandas nem meia dúzia de vezes e sempre me espanta por raro.
Quem sabe um dia nos encontramos no Minho das nossas recordações de infância e adolescência, para mim recordações ainda de tempos mais recentes, já com filhos a viverem os mesmos cenários, cenários de boas gentes, cenários de gentes do mar e do rio, mas também do campo, porque no Minho tudo coexiste.
Beijos.
Branca

RENATA CORDEIRO disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sunshine disse...

Olá Graça :)

Aqui no post esse olhar tem um intensidade que a foto pequenina do gmail não consegue alcançar. São lindos e intenso o teu olhar.

Sabes, o Minho é um dos meus lugares preferidos, custumo passar férias numa aldeia pequenina, Carreço, é aí que consigo recuperar alguma energia para um novo ano de trabalho. Não tenho essa ligação familiar com o falar das pessoas, mas fico encantada com algumas expressões que vou captando.

Apesar da idade ainda sujo as mãos de vermelho qd a caminho das praias passo por algumas veredas ladeadas de silvas coberta de amoras ... que delícia.

Bjinhos ... é sempre um prazer ler-te.

o que me vier à real gana disse...

Olá, GMV!

São assim, as gentes do Minho. Até há bem pouco, por lá trabalhei. A princípio tb eu julgava aquela gente boa uma "cambada de mal-educados". Depressa percebi que não. Genuínos; hospitaleiros; do melhor, é o que são!
Polissemia não formal, ainda sem dar entrada na norma, portanto; diversidade - = a riqueza - na significação. É disso que se trata!
... Belo ensaio, como sempre!

Bjs

mundo azul disse...

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Gostei de ler suas recordações!
Você foi, com certeza, uma menina feliz...

Beijos de luz e o meu especial carinho!!!

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. intemporal . disse...

____________________ e na plena sinestesia do verde, trago-TE beijos e desejos de uma primavera que se avizinha e de um fim de semana que está aí.

tanto para TI.

Um beijo de bom dia, Graça.

Anónimo disse...

Nada de novo? Então fico-me pelo teu olhar...

Bjos, querida e bom fim de semana

PJB

Conde Vlad Drakuléa disse...

Que olhos fortes e magnéticos tens!!! Quase hipnóticos!!!