Agrilhoada?

(Gustave Moreau - Prometheus)
Há quem sinta uma vontade intrínseca de se sentar na plateia da vida e reflectir. Sentir-se cómodo, na cadeira de veludo, e pensar maduramente no que se passa no palco. Há quem tenha essa simples capacidade de se abstrair, por momentos, do seu papel, para ponderar os efeitos da representação em nome próprio.

Dito por outras palavras, existem pessoas que olham para o pretérito criticamente, na procura do ensinamento futuro. Ou melhor ainda, o mundo está cheio de pessoas preocupadas em responder às chamadas dúvidas existenciais. De onde viemos? Para onde vamos? O que fazemos aqui?

Apesar de não poder fugir à cadeira de veludo, confesso que não me sinto tentada a olhar o passado, muito menos almejo resposta a perguntas existenciais. Prefiro vivenciar o presente com a beleza do desconhecido, sentir a força do tempo no agora, esperar que o meu porvir seja o momento actual.

No entanto, hoje dei por mim num estado de pura introspecção. Mirei-me nesta interioridade rabiscada a sentimentos, tantas vezes escondidos... Contemplei-me numa alma espelhada a dúvidas, tantas vezes por esclarecer... Encarei-me na frieza de pensamentos, tantas vezes desordenados. Vi-me!

Ao observar criticamente o meu palco, não resisti a pensar nesse Prometeu Agrilhoado. A tragédia de Ésquilo ganhou forma por trás de um pano de cena, tão gasto! por ser ininterruptamente aberto e fechado. Tal como essa personagem, castigada por tempo infinito, não me apetece a submissão. Nego a vontade das entidades superiores que insistem em me agrilhoar. Revolto-me, nem que para isso tenha de suportar a dor.

Hoje, dei por mim num estado de pura introspecção. Vi-me. E decidi. Continuarei a ser quem sou! Não obstante as águias...

Um olhar sobre nada...

(Na Serra do Larouco)

O nascimento do "Teatrices" foi espontâneo. Não foi concebido racionalmente, nem com objectivos definidos. Nasceu do nada. Que é como quem diz, da minha vontade de falar de teatro. As analogias não são originais... nem criativas... são o mero espelhar do meu gosto e da minha relação com essa arte única de dramatizar. Os ensaios não podem, por isso, ser entendidos como uma qualquer tipologia textual, revelam tão somente a execução preparatória de algo. Esse algo ainda não descobri o que é... e os ensaios perpetuam-se no tempo, ocupando este espaço.

Ora bem, hoje não me apetece ensaiar! Pretendia escrever... só escrever. O grande problema reside em que não sou escritora. Não sei como quebrar regras de sintaxe, na procura do efeito de estilo; nem como subir a um registo cuidado desta língua minha amada, que permitiria a admiração do leitor. Não sei escrever no sentido de criação ficcionária, desconheço estruturas metafóricas que organizariam o olhar de um verdadeiro fazedor de palavras.

Mas quero escrever! Pacientemente, arrumo na minha mente as regras tantas vezes transmitidas aos meus alunos... comecemos pelo tema. Ou será assunto? (Não confundir com título, claro!). Não almejo tema, não tenho assunto... assim é difícil. E é nestes momentos que relembro a facilidade com que os grandes escritores pegam nas palavras de todos os dias, saboreiam-nas semanticamente e fazem alquimia verbal.

"Porque eu sou do tamanho do que vejo/e não do tamanho da minha altura"... tão singelo, tão profundamente Alberto Caeiro.

E eu? O que vejo? Será que já vi muito? Cresci pela visão? Qual é a minha verdadeira altura? Tento escrever sobre isso... e só me sai, imperfeitamente, a não-frase "Um olhar sobre nada..."!

Releio criticamente o que escrevi... não sou escritora! Voltarei, outro dia, para ensaiar.

Ensaio sobre a verdade...

(Foto de Luís AT)

Todos os dias aprendo mais um pouco sobre o Mundo... e todos os dias quero aprender mais um pouco sobre mim. Nada de extraordinário... aliás, duas afirmações que soam a simples trivialidades. No entanto, não deixam de ser verdade.

Hoje, no palco, com cenário pintado de aquisição de conhecimento, que é a Escola, fui confrontada com a seguinte interpelação "Vá lá, S'tora, diga lá a verdade!".

Naquela fracção de segundo, que tem a dimensão de uma eternidade, o meu pensamento iniciou um processo sério de reflexão. As interrogações introspectivas sucediam-se, como torrentes de uma qualquer cascata! Estariam os meus lindinhos a partir do pressuposto de que eu não digo a verdade? Pensariam que, no discorrer dos conteúdos programáticos, a mentira prevalece? Que a Literatura é mentirosa? Que a gramática é entidade falsa? Que a interpretação induz em erro?

Uma fracção de segundo, com dimensão de eternidade, bastou para que o meu pensar, rapidamente, procurasse a definição da verdade. Vindas das profundezas, desse espaço reservado, onde se guardam algumas aprendizagens, ouviam-se as vozes daqueles que foram os meus professores, (ah! que saudade desses mestres do ensino, modelos de vida que eu quis seguir): verdade? o que é a verdade? concepção? pragmática? teoria? teorema?... que verdades? materiais? analíticas? formais?... na perspectiva lógica? metafísica? filosófica?... e ainda Nietzsche, o meu preferido, soprando no meu ouvido que a verdade não é mais do que um ponto de vista... e o outro quase gritando que não vale a pena falar de verdade, uma vez que é algo sempre em construção... Uma fracção de segundo? Pareceu-me uma eternidade!

"Vá, S'tora, diga lá a verdade? Qual é o seu poema preferido?". O tempo ficou suspenso. Acalmei o meu pensamento. Olhei-os. Devolveram-me um olhar brilhante pela expectativa...

A minha Verdade cobriu-se, sem falsidades, com o som da minha alma: "Não tenho! O meu poema preferido é a própria poesia."

Sem tempo...

(Foto de Luís AT)

Vai-se lá saber o que a vida faz do tempo! Provavelmente, anda escondido por aí! Perdido, enfim...

Certo é que avança sem piedade, passa sorrateiro, como se diáfano fosse... e não fica! Por vezes, apetece agarrá-lo, agrilhoá-lo sem misericórdia, privá-lo da sua liberdade desmedida, que ironicamente brinca com o espaço da nossa vida. Um tempo sem espaço?

Não há interregnos no tempo. Segundo a segundo, o ponteiro marca a sua falta. E não fica! Não dá direito a paragens... não se sente, no entanto, comanda a vida. Sem... sem... repete-se à exaustão... sem tempo, não há tempo, falta tempo!

Ah! o tempo! Em vão, luta-se contra o dito, numa inglória batalha perdida antes do início.

Vai-se lá saber onde anda o meu tempo! Provavelmente, já passou... e eu nem dei por ele.

Estou sem tempo.

Uma furtiva lágrima...



Na arte do espectáculo, admiro particularmente esses dramas encenados ao sabor dos sons de uma pauta. Ópera. Libretos repletos de histórias trágicas, ou nem por isso.

Quando assisto a uma ópera, no meio de um silêncio de sala cheia, incido a atenção no poder da palavra. As palavras ganham contornos indescritíveis ao saírem projectadas pela voz de um tenor, ou serpenteadas na articulação de uma soprano. As palavras preenchem-se de sentimento, espalham sentidos, impõem respeito.

Não consigo explicar com exactidão o que perpassa no meu pensamento, enquanto aquele canto invade a minha alma. Provavelmente, nada, mas é um nada que sacia, que alimenta, que me ocupa a mente.

O poder da música assim cantada, faz com que nem tenha importância a língua utilizada. Parece que, sentada naquela cadeira, a pessoa se torna poliglota do sentir.

Ontem, fui à ópera. O Elixir d'Amor. Diz-se comédia em dois actos. Na verdade, até podia ser a ópera mais cómica do mundo. Sem qualquer explicação, uma furtiva lágrima soltou-se vagarosamente pela minha face. O tenor cantava essa mesma ária "Uma furtiva lágrima" (no seu olhar nasceu)... e ali no palco senti a força de tão simples palavras.

Gosto de ópera, enfim!

Eu não...

(Penhas Douradas)


Quando ouvimos palavras tão simples cantadas por uma voz que admiramos, os sentidos voam na procura de significados.

Cheguei há pouco do concerto do Tim. Às tantas, a voz elevou-se e, melodiosamente, verbalizou um pensamento singelo: "Eu saberei viver, sem o olhar dos olhos teus, olhando os meus...".

Amadureci a ideia no caminho para casa. Concluí: eu não!

Ensaio sobre a teia...

(foto de Paola)

Há uns anos atrás, fui convidada para, em conjunto com os meus pequenos actores, visitar esse mundo desconhecido que é o interior de um Teatro. Esses meus aprendizes do fingir vivenciavam, na altura, tudo o que se relacionava com a arte da representação, de uma forma quase adulta. Queriam embrenhar-se rapidamente no "mundo", como lhe chamavam. O convite foi quase um prémio.

Durante uma manhã inteira, vestiram o papel de curiosos e vasculharam tudo a que tinham direito. Os olhos brilhavam de admiração no interior dos camarins... os sorrisos abriam gargalhadas por entre o pó dos guarda-roupa alinhados numa imensa arrecadação... os pés pareciam asas ao percorrer o infinito de um palco - verdadeiro... os queixos caíam de espanto ao entrar na caixa do ponto. No entanto, a leal emoção estava guardada para o momento em que o actor-guia comunicou: "Agora vamos subir à teia." Teia? Interrogavam no silêncio de quem nem conseguia articular palavra. Os seus olhos urdiam a pergunta tecida a fios da mais pura seda inocente. Quase que verbalizavam "Então, num teatro há teias em vez de tecto?"

Subimos... por umas escadas que serpenteavam no ranger da idade. Ao chegar ao ponto mais elevado daquela sala, os meus lindinhos nem queriam acreditar que estavam por cima do palco, num emaranhado de estruturas metálicas, cheias de cordas, projectores, cenários enrolados, mecanismos estranhos, roldanas prontas a iniciar a sua função. Era aquilo a teia? E as aranhas?

O actor lá ia explicando a importância extrema daquela secção da sala. Nada funcionava em palco, se a teia não funcionasse. O sucesso do plano inferior, dependia da habilidade do superior!

No regresso, quiseram estabelecer a comparação "S'tora! A teia é como se fosse Deus?".
Não os quis chocar com a minha não crença religiosa, mas argumentei que nem todos os teatros têm a sua teia, e isso não impede o sucesso das representações em palco...
...tal como na vida!

Ensaio sobre distâncias...

(Penhas da Saúde - foto de Marina)

Numa acepção simples, quanto dista o longe? A distância utiliza que medida de longitude? Quando se está longe, onde se permanece?

Imaginemo-nos em cima de um palco... a sala de espectáculo cheia, como convém. Observemos a sala. Convencionou-se, sabe-se lá porquê, que a distribuição dos lugares por um espaço de assistência devia obedecer a critérios bem definidos. O do valor monetário. Vejamos. Camarotes, os mais caros! Galeria (se ainda existe), os lugares mais baratos. Ainda num plano superior, o balcão, por vezes dividido entre primeiro e segundo, a preços mais ou menos. Finalmente, a plateia. Ali tão perto, mas não acessível a todas as bolsas.

Transpondo metaforicamente o palco para a nossa simples existência, vivemos numa sala cheia de pessoas, que ocupam os seus lugares da Galeria à Plateia. Serão os mais importantes aqueles que nos observam do Camarote? No entanto, quantas vezes, em dia de espectáculo, os camarotes estão vazios? E na Plateia? Não será nesse espaço tão exposto que os aplausos parecem forjados, com pouco entusiasmo, diria eu? E nessa sacada saliente, com vista privilegiada que é o Balcão, estarão os mais interessados na nossa vida?

Na medida da distância, quem está mais longe são os que ocupam a Galeria. Tantas vezes, os únicos que incentivam, sem pudores, a representação; os que apupam sem receio; os que aplaudem de pé (até porque daí só se vê bem de pé!).

Numa interpretação simples, as pessoas que estão mais perto de nós serão as mais importantes? Não sentiremos a sua obrigação, de lugar mais caro, de apaludir só por aplaudir? Que dizer dos que se resignam à distância? Não viverão, sem qualquer interesse, a clamar pelo nosso sucesso?

No palco, como na vida, não há longe, nem espaço para distâncias... há pessoas que nos transmitem o seu crer da forma mais simples: estando!

Ensaio sobre a crise...


Há uns anos largos, fui fazer uma formação sobre "valores". Não que os tivesse perdido, nem tão pouco esquecido a importância dos ditos na formação de qualquer ser humano. Na verdade, foi o título que me chamou... "A crise dos valores".

Falava-se, já na altura, que os alunos andavam contrariados na Escola, que não tinham objectivos para o futuro, que não queriam estudar, que... que... que nem sabiam o que eram "valores". Da primeira sessão, recordo um formador sem perfil para a comunicação, com um receio atroz de fixar os olhos dos seus formandos. Bem, na "verdade", devia ter expressado, desde logo, a minha "bondade" para com o jovem inexperiente. Mas não! Num sábado de manhã, quando a "harmonia" do descanso reinava lá fora, não me sentia preparada para qualquer acto de "justiça" forçada. Queria a minha "liberdade", longe de alguém que nem se dignava a ver com "igualdade" os seus pares. Afinal, também ele era professor.

Serve esta imensa explicação para relembrar o que ficou dessa formação. Nada. Ou melhor: um discurso monótono de palavras decoradas, definindo a crise "perturbação que altera o curso ordinário das coisas..."

A crise, assim apresentada, remete-me para o meu estado de fim de Domingo. Algo perturba o meu curso normal. Falta-me vontade para escrever. Estou em crise!

E num acto de "solidariedade" para comigo, vou parar de o fazer... A minha crise passará amanhã. (ao contrário da outra)

Ensaio sobre o deserto...

(Antas - foto de GMV)


Há dias, na nossa vida encenada, que parecem citações de grandes obras. Palavras ficcionadas sinónimas de realidades vividas.

O dia foi de um Outono que resiste à despedida das cores do Verão. O Sol imperou, magnânimo, num espelho de céu azul. A agitação das pessoas anónimas, na azáfama do dia-a-dia, vestiu-se com as tonalidades fortes e claras. Dia quase perfeito para o ressurgir de alegrias e vontades inexplicáveis... a minha era simples: citar!

Dessa obra intemporal, dessa aventura sem idades, pela imaginação de Saint-Exupéry: " - O que torna o deserto bonito - disse o principezinho - é ter um poço escondido em qualquer lado..."

Há dias assim... no meio de um deserto de ideias... no avistar de uma imensidão de nada... na aridez de sentimentos... no ermo arenoso de valores... é fundamental crer que existe um qualquer "poço"!

O meu, hoje, estava escondido na sala 20. O texto era apelativo... porque cheio de registos familiares da nossa querida língua. Nada dificultava a compreensão, nem aquela intrusa palavra - "promiscuidades" - cujo sentido se tirava pelo contexto. Inocente ilusão. A "encenadora" gosta de complicar.

O arranque de ideias começou devagarinho... como quem segura o saca-rolhas, sem exercer a força necessária para entranhar a cortiça. Mas o objectivo era destapar o gargalo, fazê-lo soar num grito de libertação.
Conclusão de uma aula: o deserto é mesmo bonito! No "poço" dos meus lindinhos, matei um pouco da minha sede.

Solilóquio...

(Paredes de Coura - foto de GMV)


Na arte dramática, não é difícil depararmo-nos com solilóquios. A peça fica, sem dúvida, enriquecida com esses momentos em que a personagem extravasa os seus pensamentos, na tentativa de lhes encontrar uma lógica... sem se dirigir a ninguém em particular, a não ser a si mesmo.

São vários os exemplos destes autênticos pensamentos falados, registados no texto dramático, ao longo dos séculos de existência do Teatro. Que dizer de Hamlet e do seu tão famoso "Ser ou não ser"? Bem, na verdade, eu teria muito a dizer, uma vez que o mais interessante é mesmo a sua divagação sobre o "Morrer! dormir; dormir, sonhar talvez?"

No palco desta nossa vida, há ocasiões em que é premente parar um pouco e tentar organizar o que nos vai pelo pensamento. Tentei. É verdade que tentei... muito, ou seria mais correcto dizer muitíssimo? Nem o superlativo me valeu, confesso...

Fazer um solilóquio requer o sentido da ordem, o valor da lógica. E, por estes dias, nem ordem, nem lógica têm assento na minha tão vazia cabeça. Vazia? Se calhar nem é o termo adequado... Cheia, até não caber mais!

Sou dada a uma boa reflexão. Gosto desse exercício introspectivo. No entanto, um bom solilóquio não se dirige a ninguém em particular, e os meus pensamentos desordenados reclamam públicos bem definidos.

Confusa? Talvez... por isso não me concebo em personagem. Prefiro a Encenadora.

No outro lado...

(O outro lado do tempo - de Teresa Ribeiro)

"Nada, nada... Isto está tudo errado... A cousa é mais complexa do que eu julgava. Isto é agora muito fundo..." (esta é mesmo de Pessoa)

Na complexidade de sentir tudo errado, no instantâneo do profundo, na não existência... procurei o outro lado do tempo.

Um tempo de crenças na natureza humana, sem necessidade de deuses inventados. Onde os sons eram os primeiros, sem ruídos poluidores de palavras vazias. Quando a alegria pelo desconhecido clamava pelo conhecimento.

Procurei o outro lado do tempo, pleno de rostos ávidos pelo aconchego de quem sabe. Sem submissões impostas, mas desejadas. Nesse outro lado, o tempo parou. Com receio dos senhores do tempo. Para evitar cronologias desadequadas.

Um tempo onde as páginas em branco reclamavam pela escrita, onde as salas se silenciavam pelas palavras a beber, onde os quadros negros eram depositários de nervosismos de quem quer fazer bem.

Nesse tempo, num outro lado, as pessoas eram elos fortes de uma corrente que não agrilhoava. Prendia, sem amarras, para toda uma vida... ao longo dos tempos.

Era um palco sem medidas, de actores felizes, na consciência de que a peça seria reconhecida.

Hoje, o tempo perdeu-se. Procura lados escondidos em sentimentos de revolta. O tempo virou burocracia, esmagado por toneladas de papéis produzidos em série, numa luta contra o tempo. Hoje, a corrente partiu-se, sem réstia de piedade. Os elos permanecem à espera de novas directrizes. É um tempo de nada. "Nada, nada. Isto está tudo errado."

N'o outro lado do tempo, houve felicidades sentidas... Hoje, é dia do Professor!!

Ensaio repetido...

(de Carlo Rochas)

Hoje, porque estou vazia, repito palavras... Há momentos em que acredito, inocentemente, que se as dissermos muitas vezes, elas tornar-se-ão verdade...


Parece que, um dia, Fernando Pessoa disse, ou escreveu, algo como "Pedras no caminho? Guardo todas. Um dia vou construir um castelo."

Conheço quem não goste do Poeta (com maiúscula, sim, porque o Poeta). Provavelmente, pela dificuldade de denotar as suas palavras, de entender as razões da complexidade do seu pensamento. Mas, quando lemos 'ditos', como o citado, devíamos imaginá-lo, sozinho, numa qualquer noite de Outono, sentindo, na antítese, as alegrias e as amarguras da vida. Sendo Pessoa, simplesmente pessoa, enfim.

Quanto mais leio este grande fazedor de palavras, mais o respeito e admiro. Muito do que escreveu poderia figurar como exposição/conflito/desenlace de qualquer 'peça' humana. No fundo, mais não fez do que procurar, como numa verdadeira demanda, a felicidade. Não é isso que todos queremos alcançar?

Se, nesse contínuo procurar, encontramos obstáculos, pedras, pedragulhos, penedos, montanhas duras e frias, desistimos? Não pegamos em rosas, porque têm espinhos? Não gostamos de cactos, porque picam?

Olhemos a vida como um desafio. Tornemo-nos autores da nossa história. Sejamos Cavaleiros andantes, de espada em punho, derrubando dragões imaginários... e outros não. Não tenhamos medo dos sentimentos...

A felicidade que todos almejam só pode residir no interior de cada um. Na capacidade de ver óasis, na imensidão do deserto. Na coragem de aceitar um 'não', sem o sentir como florete rasgando a carne. Na valentia de recusar a vitimização fácil.

Guardemos as pedras que aparecem no nosso caminho. Servem como ensinamentos nesta nossa vivência. Porque o mais importante é mesmo a própria vida... Esse Castelo erigido pela força das pedras que apanhámos, ao andar por aí.

E não tenhamos pejo em reconhecer que até um cacto tem a sua beleza! Que seja mais um adereço no cenário desta minha peça feliz!
(tão vazia... tão vazia... que até alguém teve de me alertar para o facto de a frase nem ser de Pessoa.)

Era uma vez...

(pintura de Teresa Ribeiro - Era uma vez - 2007)


Para quem me lê, para quem me conhece, sabe que não gosto de dias convencionados. Dias rotulados pela lembrança daqueles que consideram que os outros não têm memória. Hoje diz-se Dia Mundial da Música e não me ocorre fazer nenhuma homenagem tipificada, pela simples razão que a música faz parte da minha existência diária. São pensamentos feitos partituras, sentires melódicos, palavras em clave de Sol, vozes que vibram como cordas de harpas...

Da música, tenho memórias, tenho gostos, tenho canções para os vários papéis que represento. Não necessito da lembrança mundial do dia.

Neste preciso momento em que escrevo, os acordes levam-me para outras artes, para outras composições, para outras histórias.

Era uma vez um gosto inexplicável por realidades pintadas... narrador que salta da paleta e se derrama em telas brancas... personagens que surgem da confusão das cores... num tempo sem fim, num espaço imaginado. Histórias de acção estática que ganham vida com um simples olhar. O meu olhar.

Quando olho um quadro, leio-o em palavras, sinto as figuras de estilo em luta por um lugar no papel, reconheço a força de estrofes coloridas... sai um poema.

Quando observo um quadro de alguém que, por acaso, é minha amiga, experimento a sensação de que preciso escrever.

Era uma vez um poema, no fim de uma exposição... sem medo do lobo mau!