Feliz Ano Novo!

(foto de Tinta)

O tempo... o tempo que nunca pára... nunca se cansa... nunca se gasta. Insistentemente, sem grande alarido, aí está ele, segundo após segundo, lembrando a razão da existência: deixar o tempo passar!

Dezembro está quase no fim. O momento ideal para arrumar a vida e partir rumo a um novo ano. Nestas alturas, considero sempre curioso o facto de se fazerem retrospectivas, autênticas analepses diria, do que se viveu... e rapidamente antecipar desejos de mudanças, prolepses de uma outra vida que não a vivida. Não gosto de olhar o passado nem de perspectivar o futuro. Vivo o presente como o único tempo que vale a pena.

No entanto, e porque o meu pensar também é adversativo, sinto essa passagem de tempo como uma constante partida para um novo dia.

Rumo sempre em direcção àquilo que houver... uma ilha... um porto... uma sombra... uma estrela... uma onda gigantesca... não importa! Será o meu novo dia. O meu novo ano.

Ao leme desta minha embarcação, com azimute pelo destino traçado, vogarei somente... sem pedidos ritmados pelas doze badaladas... nem desejos embebidos em champanhe... Será mais um dia! Mais um ano!

Páro agora o ensaio... de mais uma representação do que sou... ou não sou!

De volta à realidade: que o novo ano permita que o meu coração seja maior do que eu... que as minhas palavras não se sintam agrilhoadas... que os meus sentimentos não embatam em muros frios... que eu seja simplesmente eu!

E que o vosso ano seja tudo o que desejarem!

Ensaio pela realidade...

(foto de GMV)

Reina a calma neste canto de mim. Sem vozes que quebrem o silêncio, sem vestígios dessa festa natalícia, sem a azáfama dessa noite familiar ornamentada de alegria.

Resta agora o sossego, neste abrigo do que sou. Só aqui, longe de tudo, distante dos outros, dou espaço à minha pessoa. Este palco não reclama representações, nem enredos, nem aplausos. Gosto destes momentos registados a serenidade, quando a única voz que escuto é a minha, num silêncio premeditado. E posso, enfim, ler... leio outras vozes, incrustadas desde sempre na minha alma...

"Que coisa é essa que procuras dentro das coisas?
Qual o pensamento que o teu pensar não alcança?
Por que céu voam as poderosas asas do teu espírito?
A que altas visões lhe é doloroso estar cego?"
(Fernando Pessoa)

É assim... uma parte da minha realidade.

Seja...

(foto de Luiz)


Não há como fugir do Natal! Mesmo que se queira. Ainda que se evoquem tristezas, que se critiquem gastos, que se relembrem misérias, não há como evitar-se.

O Natal chega de mansinho, com o mês de Dezembro. Anuncia-se nas iluminações que invadem as ruas das cidades. Passeia colorido em cuidadosos embrulhos, ao som dos passos apressados. Arruma-se em montras com árvores cónicas. Espalha-se a branco sintético nos vidros transparentes. O Natal veste-se de vermelho anafado com barbas de algodão. Pendura-se artisticamente nas janelas que nunca se abrem. Articula-se na boca de toda a gente, acompanhado desse adjectivo Feliz, tantas vezes com entoação de antónimo.

Mesmo que alguém tente resistir, o Natal entranha-se na existência. Adocica-se em massa de sonhos, orgulhosamente empilhados em balcões de pastelaria. Chama-se Rei no bolo. Disfarça-se de bacalhau cozido, ou modernamente fingido por entre natas. O Natal reclama os holofotes do último mês do ano.

Mesmo que alguém não queira, é absorvido pelo espírito em crescendo, que termina nessa noite recheada de família... Uma noite que se exige alegre. Sem piedade dos lugares que, à mesa, foram vagando. Vidas ceifadas na seara da nossa vida.

É quase Natal. E só por isso escrevo estas palavras. Porque, mesmo que eu não queira, o Natal ressoa na minha mente. Não me deixa fugir.

Então,

que a árvore seja teia global... que as bolas vermelhas espelhem os meus pedaços de ternura... que as luzes intermitentes sejam posts sentidos... que as prendas se embrulhem em comentários... que os doces sejam palavras escritas com alma... que FELIZ seja a minha e a VOSSA existência.

Quanto ao Natal... não há como fugir! Seja.

No cair do pano...

(foto de Sérgio)


O pano fechou-se. No final deste primeiro acto, do ano lectivo. O dia amanheceu carregado dessa névoa espessa, cerrada... lembrando que há desejos por sobrevir... que existe um Império por cumprir. (palavras... meras palavras)

Os meus jovens "Aprendizes" esperavam-me para o último ensaio do ano. Ensaio diferente. Sentados na plateia. Instigados por esta Encenadora, foram a experiência de público de um palco vazio. De uma peça por imaginar. Sem personagens tipificadas. Num cenário por conceber. (palavras... meras palavras)

Esgotado o silêncio de quem aprecia o nada, improvisámos pelas palavras... sentimos, em cada sílaba pronunciada, o aplauso sentido... em cada frase partilhada, criámos as cenas dessa peça vivida diariamente na Escola. (palavras...)

O público criticou, conscientemente, a representação do primeiro período, analisando o desempenho em nome próprio, nesse papel de alunos. Lamentaram-se as "deixas" perdidas, as indicações ignoradas desses encenadores/professores. Prometeram-se novos ensaios, mais felizes, com mais dedicação. (...meras palavras)

No final, a despedida. Que a Encenadora tivesse um feliz Natal... que o próximo ano fosse magnífico. Palavras de circunstância. Gastas, de tanto usadas. Repetidas à exaustão, sem pesar o sentido...

Devolvi intenções: o meu ano será magnífico, se cada um dos meus pequenos actores, nesta peça que é a vida, conseguir vislumbrar o Sol, que espera paciente... escondido no nevoeiro!

No palco verdadeiro...

(foto de GMV)

Lembrei-me que, um dia, gostaria de subir contigo aquela serra que reconhece, há anos, o som dos meus passos. Levar-te-ia desde a frondosidade das gigantescas árvores por caminhos secretos e íngremes... até à aridez dos penedos cinzentos, bem lá no cume.

Mostrar-te-ia, então, esse curso de água digno e majestoso, que serpenteia quase a beijar o mar... e, bem no meio, na equidistância das margens sombrias, na sua singeleza natural, verias a verdadeira Ilha dos Amores.

Porque, quando estou a um palmo do céu, o meu pensamento é veloz como um cervo... nas minhas veias corre a água desse rio... e o meu coração tem a forma simplíssima duma ilha perdida na Natureza.

Gostaria... sem o peso do condicional.

Ensaio pela noite...

(foto de Luís AT)

Gosto da noite. Essa companheira de sempre, que retrai a minha vontade de ir!... Gosto do silêncio da noite, impositora do descanso para as vozes que insistem em preencher espaços, dentro de mim. Gosto do escuro misterioso onde vogam os meus pensamentos. Gosto da noite. Ponteada a estrelas que invocam mitos esquecidos. Aclarada levemente pela Lua em quarto-minguante. Ou negra, simplesmente. Pintada a pesadas nuvens... que anunciam o derramar do sentir da Natureza.

Quando a noite chega, no intervalo da peça maior, recolho aos bastidores de mim. Os sentidos sobejam em variações de sinestesia. O olhar procura os sons, tacteando o gosto de aromas por anunciar. Sou eu, na noite! No oposto dos dias claros.

E porque "as palavras, depois de ditas, alcançam o silêncio", digo: gosto da noite!

(O silêncio que explique...)

No intervalo (outra vez)...

(foto de Luís A T)


"Estes murmúrios do passado, dum passado imenso, vozes que reiteram o que foi dito por outras vozes, temos de os interpretar na medida dos nossos conhecimentos, das nossas experiências - e as nossas perguntas desaparecem como se fossem pedras num poço muito fundo."
Doris Lessing

De volta aos ensaios...

(foto de GMV)


Há incidências, no nosso quotidiano, que mereciam uma reflexão apurada. Muitas vezes, ocorrem pequenas situações que ganham a dimensão indescritível de um dia repleto de emoções.

Ora bem, hoje era dia de ensaio. Como habitualmente, percorri o espaço que dista uma sala repleta de vozes estridentes e esse extraordinário espaço, tantas vezes pintado a silêncios, que é a Sala Gil Vicente. Pelos pátios, as correrias do costume, numa luta despropositada contra o vento que se fazia sentir. As folhas dos plátanos, arrancadas por sonoras rajadas de Éolo, simulavam um bailado desnorteado. As palmeiras vergavam impotentes ao peso invisível desse deus, filho de Neptuno.

De repente, senti uma sombra silenciosa que caminhava atrás de mim. Voltei-me, com aquela sensação de quem tem em si o olhar de outro alguém. Era uma das minhas jovens actrizes. Uma aprendiz do fingir! "Boa tarde, Professora." Sorriu timidamente. "Posso pedir-lhe um favor?" Não sou de favores - pensei! "Claro que sim." - respondi. "Posso tocar um pouco, hoje, no ensaio?".

O texto que andamos a ensaiar é uma adaptação da peça Antes de Começar. Não cabem momentos musicais. A acção vive da força das palavras. Do sentir do diálogo. Dos gestos das personagens. Anuí.

Já com o meu pequeno grupo em palco, pedi-lhes que esquecessem, por momentos, os papéis. Iríamos improvisar. Entraria, na nossa peça, um momento musical, nascido da vontade da tocadora de flauta transversal.

Assim foi. Os meus jovens actores improvisaram o texto, inventaram-se em novas falas, vestiram-se de outros sentires... e, num silêncio sem anúncio prévio, a flauta falou. As notas saíram na torrente de quem sabe o que diz. A melodia ganhou contornos de entoação discursiva. O monólogo tocado perpassou o sentir do coração.

Há incidências que... que... que... me levaram a decidir, no momento, que havia uma peça a reescrever. Onde uma personagem pudesse ser, simplesmente, uma flauta transversal!


(E há ensaios onde não cabem mais palavras...)

Antes de Começar...

(Serra da Estrela - GMV)

O Domingo está cinzento, um pouco frio... a chuva aparece sorrateira, de quando em vez. O cenário perfeito para quem, como eu, tem de permanecer em casa, naquela actividade indizível que é a correcção de testes.

Os meus lindinhos empenharam-se na escrita, mas, por vezes, confesso que não entendo bem o contexto de cada resposta. Afinal, o resultado rabiscado na pressa da incerteza, demonstra que nem houve uma leitura atenta. Por mais que eu explique que qualquer texto nos dá respostas, os meus lindinhos encerram no baú do esquecimento os meus simples conselhos.

Um dos textos que escolhi para este teste foi retirado dessa obra magnífica de Almada Negreiros, essa peça simbólica na descoberta do sentir que o Homem desconhece. "Antes de Começar". Ambicioso, alguns diriam... difícil, talvez. No entanto, recuso-me a fazer dos meus alunos meros fazedores de cruzes aleatórias, meros reprodutores de discursos memorizados. Há que pensar, num teste de Língua Portuguesa! Há, essencialmente, que sentir o texto. Desfazê-lo de ambiguidades. Descobrir-lhe caminhos. É uma estrada, o texto. Com placas indicadoras de percursos alternativos. A opção de virar à esquerda, ou à direita, de sair no próximo desvio, de continuar em frente, tem de ser consciente. Peço muito? (bem, os primeiros resultados dizem-me que, se calhar, sim). Mas recuso-me a ver os meus lindinhos crescer sem a possibilidade de caminharem pelos próprios pés.

A peça de Almada Negreiros é uma lição... para aqueles que não conseguem ver o Outro... para aqueles a quem pesa o Coração. Diz, às tantas, a personagem masculina de nome Boneco (!): "Só não entende o coração quem não sabe escutá-lo... Ele está sempre a contar aquela hora por que se espera... aquela hora que existe para além da sabedoria... e que tem a forma simplíssima dum coração natural!". Tão simples!

Vou voltar para as palavras dos meus alunos... com a esperança de encontrar esses corações que, envergonhadamente, se escondem na sombra da razão.

Ensaio pelo Romantismo...

(foto de José)

Há palavras que, ao longo dos tempos, se vestem de novos significados. É essa também a beleza de uma língua que se quer viva.

No entanto, e na minha humilde asserção, existem palavras que deviam rejeitar variações semânticas. Ser romântico não pode colar-se a galanteios ornados de flores, nem a corações trespassados das setas desnorteadas de Cupido, tão pouco a lágrimas vertidas defronte de imagens cinematográficas. Não! Ser romântico é um estado de espírito, herdado desse momento único na cultura universal.

O Romantismo é o meu período literário. Desenhar palavras à sombra da subjectividade intensa... agrupar versos na ânsia de evasão... ver surgir o poema da mais pura imaginação que peleja a razão... sentir a obra como um acto de criação que não imita cânones... exaltar a paixão do "Eu" sem receio de vozes críticas... isto, sim, é ser romântico... simplesmente.

Hoje, imbuída da minha condição romântica, fui professora orgulhosa da minha individualidade. Ecoaram na minha mente essas palavras descontextualizadas (ou não) da personagem Poeta, da magnífica obra de Goethe: "Quem sabe reintegrar na ordem do universo/O ser que se revolta ou que é transgresso?"

Não saberá, certamente, reintegrar-me a personificação da prepotência; não saberá a surdez hiperbólica; não saberá a perífrase de um discurso vazio de consciência; não saberão os governantes anafóricos do meu país!

Aprecio sem medida esse período romântico... onde cada Poeta (ou cada Ser?) entendia a sua existência como a busca de um mundo melhor, onde os homens pudessem sentir o domínio da Justiça...

No intervalo...

(foto de Luiz)


"Há só cada um de nós como uma cave.
Há só uma janela fechada e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela."


Alberto Caeiro

Um elo quebrado...

(foto de Luiz)

Gosto de escrever. Brincar com as palavras, numa quase infantilidade de quem descobre, a cada instante, uma nova utilização para o seu brinquedo. Gosto de respeitar o seu poder e vesti-las de novas roupagens semânticas. Gosto de observar o papel branco que desafia, num acto provocatório, ao preenchimento alinhado de frases nem sempre de sintaxe perfeita e desejável.

Gosto de escrever. Particularmente, texto dramático. Esse texto estranho que existe só por si, amargurado, talvez... numa ânsia imensa de passar a Teatro! Só no palco, o texto dramático cumprirá o seu destino... só nesse momento único de encontro com o público se completará o ciclo da sua existência...

No entanto, hoje, tenho dificuldade em redigir. Não me apetecem ensaios. Nem representações gráficas.

Durante todo o dia, pairou sobre mim uma nuvem pesada e cinzenta. Daquelas que, quando olhamos, anunciam o desabar de uma torrente de água. Daquelas que proclamam, num silêncio opressor, a descarga de toda a energia natural, raiada de sentimentos humanos.

O meu dia reclamava uma despedida. Do meu elenco, sairia o pilar fundador da minha actividade docente. Evitei cruzar olhares. Agrilhoei sentimentos que urgia pronunciar. Fugi da banalidade de um adeus...

Se hoje me obrigassem a escrever uma peça, as personagens seriam todas grilhões de uma corrente forte. Cada elo, orgulhosamente seguro nessa irmandade do todo. O cenário mostraria a aprendizagem personificada num sorriso sempre compreensivo. A acção apresentaria o desenrolar de tantos momentos de vida partilhados, num acto único. (e a nuvem deixaria transparecer um raio de Sol!)

Mas não me apetece escrever. Não quero sentir a dureza do quebrar de um elo da corrente...

Também não me apeteceu dizer adeus... disse "até amanhã"... e marquei encontro, para todos os dias, no sítio do costume... dentro do meu coração!

Ensaio sobre a pressa (o verdadeiro)...

(foto de GMV)

Ocasionalmente, por muito que goste do meu palco, surge em mim uma vontade imensa de me retirar da "companhia", de não querer mais fazer parte do "elenco".

Vagueio, então, parceira única de mim, por aí. Sem pressa. Espraio-me no asfalto em busca do mar. Nunca soube explicar a atracção que o mar tem... um mar de Outono, liberto de gente, vazio de cores que não reclama. Um mar murmurante que me chama, azul da imponência que repousa na areia deserta.

Lá, onde o Oceano se junta ao Céu, sinto o tempo parar, nessa linha do horizonte por definir. É belo o mar... soltando bramidos de revolta interior... dispersando sentimentos pela espuma das pequenas vagas.

Por vezes, gosto de me sentir pequena no enfrentar da imensidão da água, na consciência do infinito do céu. Vagarosamente, fui ver o mar.

Não sei se o tempo reclamou... nem se alguém me procurou. Ali, na dança das ondas, desapareci o tempo necessário para repor a minha energia, para arrumar as minhas ideias, para explicar os meus sentimentos.

Recuperei-me. Sem pressa. Na sinestesia dos sons saboreados, das cores tacteadas, dos aromas sussurrados a maresia. Devagar, bem devagar, soltei os meus sentidos. Junto ao mar.

Agora escrevo, sem pretensões... só porque sim! E como diria o grande Lobo Antunes, porque "sou feito destas patetices que me desfiguram o perfil".

Amanhã regresso ao palco.

Ensaio sobre a pressa...

(imagem da net)


Quando saíres do quarto, fecha a porta devagar...

Por detrás do pano...

(Alma Mater - pintura de Teresa Ribeiro)

Quando o pano fecha, no final de mais uma representação, a vida retoma o seu curso normal. Despem-se roupagens pesadas, lavam-se sorrisos pintados, olha-se o espelho na ânsia que seja devolvido o verdadeiro EU.

Os projectores apagam-se e, no silêncio frio de uma sala vazia, as memórias ganham forma, assumem o papel principal.

Ora bem, o meu pano nem tinha fechado. Encenava mais uma aula, nesse papel que até gosto de Directora de Turma. O monólogo versava a conduta, o comportamento, a atitude individual que prejudica o colectivo. Braço no ar. Desabafo de uma das minhas lindinhas: "A Professora diz isso, porque nunca foi aluna!". A risada geral fê-la corar, na rápida certeza do disparate pronunciado.

A Professora nunca foi aluna? Respondi seriamente: "Tem razão, nunca fui aluna..." E tudo o mais que pensei, não disse. Nunca fui aluna, como quem é aluna agora. Sempre gostei de escola... sempre quis ser Professora. Fui aluna-esponja, de quem almejava reter tudo o que os professores, humildemente, me quisessem transmitir. Na minha memória, num espaço reservado de mim, tenho emoldurados cada um desses seres que foram os meus professores. Desde a primária, até à minha entrada no liceu. A cada contacto, num novo ano, a minha certeza ia crescendo. Queria ser Professora, queria a experiência de que, com cada palavra minha, um conjunto de jovens irrequietos pudesse pintar as páginas em branco do conhecimento. A cada nova disciplina, o meu gosto ia aumentando, o meu horizonte cada vez mais vasto. Cada nome, uma promessa: história, sociologia, antropologia, psicologia, relações públicas, jornalismo, filosofia... toda a humanidade, na expressão das Humanidades. Sempre quis ser Professora, mas, no dia em que a minha querida Professora de Literatura Portuguesa declamou o Manifesto Anti-Dantas, eu soube que seria Professora.

Da Faculdade, dessa vivência única na década de 80, guardo todos os nomes... tive sorte, eu sei... fui aluna de grandes Professores, grandes escritores, enormes registos de vida. David Mourão Ferreira, João Ferreira Duarte, Joaquim Manuel Magalhães, Mário Dionísio... todos homens, todos poetas... das Professoras, ficou, num lugar especial, Margarida Vieira Mendes, a cultura personificada.

"Tem razão, nunca fui aluna... sou uma eterna aluna!". Sempre quis ser Professora, para que a aluna que há em mim fizesse uma constante demanda pela "Alma Mater" da minha condição.

Hoje, sou Professora. E, por detrás do pano, recuso-me a despir o meu papel!

O segredo...

(O segredo - pintura de Teresa Ribeiro)

Quantas vezes, no resultado da mais pura reflexão, nos apetece uma simples confidência? Procurar um ouvido amigo e depositar, no mais fundo do outro, o que nos vai no pensamento. Um segredo! Um desataviado segredo, que, por alguma razão, ocultámos cuidadosamente. Porque não se deve dizer. Porque a sua génese reclama o ser escondido, o não ser partilhado.

Quantas vezes, as palavras queimam no desejo de serem pronunciadas, para que se tornem leves na nossa consciência. Pura ironia. Se é segredo, deve manter-se nessa condição. Guardado, ou se possível esquecido, nas profundezas da nossa memória. Isolado, para evitar contaminações indesejáveis. Opiniões, redundâncias, pareceres, conselhos... tudo viroses perigosas que urge impedir.

Umas vezes, o segredo envolve um outro. Alguém que nos confiou um desejo, uma vontade, um aspecto privado da sua tão pública vida. Deve-se velar por ele, pelo segredo, respeitando esse momento indescritível em que alguém nos fez depositário desse soprar ao ouvido.

Outras vezes, o segredo é nosso. Algo que não queremos divulgar, porque unicamente nosso. Mas a fraqueza existe, e lá vamos nós procurar um recipiente humano, na crença de que se manterá assim, a dois partilhado. Pura ilusão. O que nos moveu para a revelação do dito, será também o motor que levará a divulgá-lo a mais duas ou três pessoas, até que seja do conhecimento geral.

Um segredo. Aquilo que se deve cuidadosamente ocultar. Sei do que falo. Já fui tantas vezes o ouvido, onde se encosta uma boca que murmura a confidência. Alguns moram em mim, como se de mim fizessem parte. Outros pesam-me toneladas e lutam, no interior da minha consciência, para se libertarem. Resisto... no entanto, reconheço o quanto me desgasta o transporte de algo que não é meu.

E eu? Haverá segredos nos bastidores deste palco? Sim, mas egoisticamente não me apetece partilhá-los.

Não sei! Não me interessa...

(Rio Coura - foto GMV)

Neste meu palco, onde visto o papel de Encenadora de práticas lectivas, há dias em que, convictamente, percebo porque sempre quis ser Professora. São aqueles dias em que não há burocracia que estrangule o meu prazer... em que as metas e os objectivos são todos subjectivos... em que a surdez de quem manda não cala o meu sentir.

A aula começou com o lançar da proposta de produção de um texto colectivo. A receptividade costuma ser boa. Afinal, os meus lindinhos gostam de ver nascer no quadro, ainda preto, o resultado das suas contribuições, primeiro sugeridas a medo, depois entusiasticamente ditadas, na certeza de que conseguiremos um texto que não envergonhe ninguém. A colaboração de todos é obrigatória. O apagar constante, na procura da palavra adequada, ou na tentativa da sintaxe quase perfeita, é normal. Eles apreciam. Eu também.

No entanto, hoje não me apetecia um qualquer texto. Pretendia um poema. "Ohhh..." o desânimo chegou. "Um poema? Isso é difícil!" - argumentaram. Não me interessa! Será um poema. - retorqui.

Dificultei a actividade ao escrever, bem no alto, o título "O Colar". O colar? Um poema sobre o colar?

De repente, um braço no ar. "Professora, como definiria poema?". Por momentos, senti vontade de verbalizar o meu pensamento, longe de preceitos teóricos, armadilhado pela singela pergunta. Um poema? Não sei! Não me interessa... Dizem que o ser se revela no criar de um poema, transfigurado na desculpa de quem não consegue dizer. Dizem que o verso é defesa de quem só procura viver. Conta-se em estrofe marcada, arruma-se numa qualquer métrica de nada... O poema não é só saída, nem esplendor criativo, é o grito da alma ferida, onde o sentimento permanece cativo. Dizem que o ser se revela... Não sei! Não me interessa...

Claro que não pronunciei uma única palavra que revelasse o meu pensamento. Respondi que o poema seria definido no resultado da aula de hoje.

Iniciámos o trabalho... e, rapidamente, surgiram os dois primeiros versos de um poema com o título "O Colar":

Descubro nas ondas brancas
Cem pérolas de fantasia...

Pronto, o pior tinha passado. O entusiasmo voltou. O poema cresceu. E o meu dia ganhou o ornato de palavras encadeadas... não para colocar no pescoço, mas para gravar na minha alma.

Ensaio sobre lobos...




Costumo dizer aos meus alunos que um bom título deve obedecer a determinadas características. Afinal, ele pode ser a chave que põe a descoberto a polissemia de um texto.

No entanto, nem sempre é assim. Muitas vezes, quem escreve resolve trancar a porta com fechadura inviolável. Ao invés de orientar o caminho a percorrer por entre as palavras, prefere colocar as grades do difícil acesso. Nesses casos, chega-se ao final do escrito e nem se compreendeu muito bem o que se passou na mente do autor para intitular o seu texto daquela forma.

Serve o intróito para dizer que não vou falar de lobos. Apesar de reconhecer que esse mamífero selvagem merecia, sem dúvida, um qualquer ensaio. Mas não. Não me apetecem extinções, nem alcateias, muito menos uivos, ou olhares traiçoeiros.

Aliás, serve somente a introdução para assumir que não vou falar de nada... nada sobre ensaios, nada sobre palcos... não farei analogias gastas com a vida... omitirei personagens e papéis... passarei ao lado de cenas e actos repetidos.

Na verdade, só pretendia escrever que, hoje, por acaso, embati numa frase de Erasmo de Roterdão... e pronto! Imbuída dessa certeza de que existem aforismos intemporais... crente nessa veleidade que por vezes me habita... concebi que tinha sido feita à minha medida, a frase, entenda-se: "O lobo talvez mude a pele, mas nunca a alma."

Por momentos, senti-me uma loba... longe da sua alcateia, mas conscientemente cumprindo a sua alma.

Ensaio sobre felicitações...

Num passado algo distante, num longínquo dia sete, como o de hoje, numa tarde fria de Novembro, alguém me ofereceu um livrinho... Serve o diminutivo para expressar o meu sentimento primeiro pelo dito. Sou pelos livros! Bons livros! Livros que suportem leituras infinitas! Livros resistentes a tantas viagens de companhia! Livros concebidos pela Literatura, se é que me faço entender.

Ora bem, para além do "inho", o objecto de capa azul veio embrulhado na frase, também ela oferecida: Tem tudo a ver contigo! Fiquei desiludida por alguém considerar que a minha pessoa se reflectia num livrinho de capa azul. Mais tarde, compreendi as palavras. Afinal, o título ocupava quase toda a diminuta capa: Scorpio!

Nunca liguei muito a astrologia, não no sentido de vasculhar páginas de periódicos, na demanda irracional de saber se o meu dia iria correr bem... se o metal vil encheria os meus bolsos... se o homem da minha vida me atraiçoaria sem pejo... se no trabalho teria de entregar a minha ficha de objectivos individuais...

Nasci em Novembro. Sou Escorpião. E o livrinho continua a ser a minha cara. Aliás, numa atitude perfeitamente contrária à razão, considero que foi mesmo escrito para mim! Clarifico...

Em frases feitas, sem grandes ambições sintácticas, nem ornatos literários, lá vão surgindo as características de quem nasceu sob a influência desse signo fixo, (porque não mutável): adoram enfrentar dificuldades (acrescentaria que, às vezes, nem tenho hipótese de escolher!); têm grande capacidade de recuperação (eu diria que estou em constante e renovada recuperação!); são atreitos a paixões violentas (ou, no meu caso, só paixões... bem, pronto, paixões impetuosas!); interessam-se pelo profundo e pelo oculto (sim, sim, adoro e também por Pessoa!); são por vezes possessivos (bem, sem comentários!); são dotados de um sentido crítico muito desenvolvido (como adoro esse meu sentido quase obrigatório!); possuem uma vontade indómita (nem digo de quê!); impetuosos e magnetizantes (assumindo todas as consequências que daí advêm!)... e mais meia dúzia de aspectos de quem, como eu, gosta de aplicar uma boa ferroada... metafórica umas vezes, hiperbólica nas outras, e tantas ainda só perifrástica!

Como passar, então, indiferente por este espelho de mim? Mas... e quanto ao resto? Tudo aquilo que verdadeiramente sou, e não existe registado em livrinhos de série azul? Sou... sendo... assim...

Quanto ao Scorpio... prefiro a constelação... e a história mitológica que lhe está associada.

Nasci em Novembro, num dia sete, como hoje, sem sequer imaginar que a minha vida seria feliz... e felizmente repleta de livros... sem "inho"!

Ensaio sobre banalidades...

(Nogueira - foto de GMV)


Neste palco imenso, e por vezes tão vazio, da incomparável existência, assumimos calmamente os papéis que nos dão... ou então, fingimos que os criamos, concebendo personagens pensadas à medida do nosso sentir. Iludimo-nos no desejar de uma construção modelada, que resulta sempre em personagem-tipo! Na verdade, pretendemos apenas impressionar o nosso público, na avidez dos aplausos que nos impulsionarão de novo para o palco.

Não sei bem porquê, mas hoje apetecem-me banalidades, palavras ocas de sentido, pensamentos insignificantes, gestos perdidos por entre nada! Hoje, não quero a representação.

Queria, mesmo que por breves instantes, SER! Ser isto que sou desde o início, sem ensaios preparatórios do que não quero ser... queria a simplicidade da frase de António Lobo Antunes "Que lugar-comum sou."! Queria, no observar consciente de mim, a certeza de que sou sem-personagem... Queria, na imperfeição deste pretérito, transformar o meu papel num real indicativo.

Enfim... meras banalidades de mim.

Agrilhoada?

(Gustave Moreau - Prometheus)
Há quem sinta uma vontade intrínseca de se sentar na plateia da vida e reflectir. Sentir-se cómodo, na cadeira de veludo, e pensar maduramente no que se passa no palco. Há quem tenha essa simples capacidade de se abstrair, por momentos, do seu papel, para ponderar os efeitos da representação em nome próprio.

Dito por outras palavras, existem pessoas que olham para o pretérito criticamente, na procura do ensinamento futuro. Ou melhor ainda, o mundo está cheio de pessoas preocupadas em responder às chamadas dúvidas existenciais. De onde viemos? Para onde vamos? O que fazemos aqui?

Apesar de não poder fugir à cadeira de veludo, confesso que não me sinto tentada a olhar o passado, muito menos almejo resposta a perguntas existenciais. Prefiro vivenciar o presente com a beleza do desconhecido, sentir a força do tempo no agora, esperar que o meu porvir seja o momento actual.

No entanto, hoje dei por mim num estado de pura introspecção. Mirei-me nesta interioridade rabiscada a sentimentos, tantas vezes escondidos... Contemplei-me numa alma espelhada a dúvidas, tantas vezes por esclarecer... Encarei-me na frieza de pensamentos, tantas vezes desordenados. Vi-me!

Ao observar criticamente o meu palco, não resisti a pensar nesse Prometeu Agrilhoado. A tragédia de Ésquilo ganhou forma por trás de um pano de cena, tão gasto! por ser ininterruptamente aberto e fechado. Tal como essa personagem, castigada por tempo infinito, não me apetece a submissão. Nego a vontade das entidades superiores que insistem em me agrilhoar. Revolto-me, nem que para isso tenha de suportar a dor.

Hoje, dei por mim num estado de pura introspecção. Vi-me. E decidi. Continuarei a ser quem sou! Não obstante as águias...

Um olhar sobre nada...

(Na Serra do Larouco)

O nascimento do "Teatrices" foi espontâneo. Não foi concebido racionalmente, nem com objectivos definidos. Nasceu do nada. Que é como quem diz, da minha vontade de falar de teatro. As analogias não são originais... nem criativas... são o mero espelhar do meu gosto e da minha relação com essa arte única de dramatizar. Os ensaios não podem, por isso, ser entendidos como uma qualquer tipologia textual, revelam tão somente a execução preparatória de algo. Esse algo ainda não descobri o que é... e os ensaios perpetuam-se no tempo, ocupando este espaço.

Ora bem, hoje não me apetece ensaiar! Pretendia escrever... só escrever. O grande problema reside em que não sou escritora. Não sei como quebrar regras de sintaxe, na procura do efeito de estilo; nem como subir a um registo cuidado desta língua minha amada, que permitiria a admiração do leitor. Não sei escrever no sentido de criação ficcionária, desconheço estruturas metafóricas que organizariam o olhar de um verdadeiro fazedor de palavras.

Mas quero escrever! Pacientemente, arrumo na minha mente as regras tantas vezes transmitidas aos meus alunos... comecemos pelo tema. Ou será assunto? (Não confundir com título, claro!). Não almejo tema, não tenho assunto... assim é difícil. E é nestes momentos que relembro a facilidade com que os grandes escritores pegam nas palavras de todos os dias, saboreiam-nas semanticamente e fazem alquimia verbal.

"Porque eu sou do tamanho do que vejo/e não do tamanho da minha altura"... tão singelo, tão profundamente Alberto Caeiro.

E eu? O que vejo? Será que já vi muito? Cresci pela visão? Qual é a minha verdadeira altura? Tento escrever sobre isso... e só me sai, imperfeitamente, a não-frase "Um olhar sobre nada..."!

Releio criticamente o que escrevi... não sou escritora! Voltarei, outro dia, para ensaiar.

Ensaio sobre a verdade...

(Foto de Luís AT)

Todos os dias aprendo mais um pouco sobre o Mundo... e todos os dias quero aprender mais um pouco sobre mim. Nada de extraordinário... aliás, duas afirmações que soam a simples trivialidades. No entanto, não deixam de ser verdade.

Hoje, no palco, com cenário pintado de aquisição de conhecimento, que é a Escola, fui confrontada com a seguinte interpelação "Vá lá, S'tora, diga lá a verdade!".

Naquela fracção de segundo, que tem a dimensão de uma eternidade, o meu pensamento iniciou um processo sério de reflexão. As interrogações introspectivas sucediam-se, como torrentes de uma qualquer cascata! Estariam os meus lindinhos a partir do pressuposto de que eu não digo a verdade? Pensariam que, no discorrer dos conteúdos programáticos, a mentira prevalece? Que a Literatura é mentirosa? Que a gramática é entidade falsa? Que a interpretação induz em erro?

Uma fracção de segundo, com dimensão de eternidade, bastou para que o meu pensar, rapidamente, procurasse a definição da verdade. Vindas das profundezas, desse espaço reservado, onde se guardam algumas aprendizagens, ouviam-se as vozes daqueles que foram os meus professores, (ah! que saudade desses mestres do ensino, modelos de vida que eu quis seguir): verdade? o que é a verdade? concepção? pragmática? teoria? teorema?... que verdades? materiais? analíticas? formais?... na perspectiva lógica? metafísica? filosófica?... e ainda Nietzsche, o meu preferido, soprando no meu ouvido que a verdade não é mais do que um ponto de vista... e o outro quase gritando que não vale a pena falar de verdade, uma vez que é algo sempre em construção... Uma fracção de segundo? Pareceu-me uma eternidade!

"Vá, S'tora, diga lá a verdade? Qual é o seu poema preferido?". O tempo ficou suspenso. Acalmei o meu pensamento. Olhei-os. Devolveram-me um olhar brilhante pela expectativa...

A minha Verdade cobriu-se, sem falsidades, com o som da minha alma: "Não tenho! O meu poema preferido é a própria poesia."

Sem tempo...

(Foto de Luís AT)

Vai-se lá saber o que a vida faz do tempo! Provavelmente, anda escondido por aí! Perdido, enfim...

Certo é que avança sem piedade, passa sorrateiro, como se diáfano fosse... e não fica! Por vezes, apetece agarrá-lo, agrilhoá-lo sem misericórdia, privá-lo da sua liberdade desmedida, que ironicamente brinca com o espaço da nossa vida. Um tempo sem espaço?

Não há interregnos no tempo. Segundo a segundo, o ponteiro marca a sua falta. E não fica! Não dá direito a paragens... não se sente, no entanto, comanda a vida. Sem... sem... repete-se à exaustão... sem tempo, não há tempo, falta tempo!

Ah! o tempo! Em vão, luta-se contra o dito, numa inglória batalha perdida antes do início.

Vai-se lá saber onde anda o meu tempo! Provavelmente, já passou... e eu nem dei por ele.

Estou sem tempo.

Uma furtiva lágrima...



Na arte do espectáculo, admiro particularmente esses dramas encenados ao sabor dos sons de uma pauta. Ópera. Libretos repletos de histórias trágicas, ou nem por isso.

Quando assisto a uma ópera, no meio de um silêncio de sala cheia, incido a atenção no poder da palavra. As palavras ganham contornos indescritíveis ao saírem projectadas pela voz de um tenor, ou serpenteadas na articulação de uma soprano. As palavras preenchem-se de sentimento, espalham sentidos, impõem respeito.

Não consigo explicar com exactidão o que perpassa no meu pensamento, enquanto aquele canto invade a minha alma. Provavelmente, nada, mas é um nada que sacia, que alimenta, que me ocupa a mente.

O poder da música assim cantada, faz com que nem tenha importância a língua utilizada. Parece que, sentada naquela cadeira, a pessoa se torna poliglota do sentir.

Ontem, fui à ópera. O Elixir d'Amor. Diz-se comédia em dois actos. Na verdade, até podia ser a ópera mais cómica do mundo. Sem qualquer explicação, uma furtiva lágrima soltou-se vagarosamente pela minha face. O tenor cantava essa mesma ária "Uma furtiva lágrima" (no seu olhar nasceu)... e ali no palco senti a força de tão simples palavras.

Gosto de ópera, enfim!

Eu não...

(Penhas Douradas)


Quando ouvimos palavras tão simples cantadas por uma voz que admiramos, os sentidos voam na procura de significados.

Cheguei há pouco do concerto do Tim. Às tantas, a voz elevou-se e, melodiosamente, verbalizou um pensamento singelo: "Eu saberei viver, sem o olhar dos olhos teus, olhando os meus...".

Amadureci a ideia no caminho para casa. Concluí: eu não!

Ensaio sobre a teia...

(foto de Paola)

Há uns anos atrás, fui convidada para, em conjunto com os meus pequenos actores, visitar esse mundo desconhecido que é o interior de um Teatro. Esses meus aprendizes do fingir vivenciavam, na altura, tudo o que se relacionava com a arte da representação, de uma forma quase adulta. Queriam embrenhar-se rapidamente no "mundo", como lhe chamavam. O convite foi quase um prémio.

Durante uma manhã inteira, vestiram o papel de curiosos e vasculharam tudo a que tinham direito. Os olhos brilhavam de admiração no interior dos camarins... os sorrisos abriam gargalhadas por entre o pó dos guarda-roupa alinhados numa imensa arrecadação... os pés pareciam asas ao percorrer o infinito de um palco - verdadeiro... os queixos caíam de espanto ao entrar na caixa do ponto. No entanto, a leal emoção estava guardada para o momento em que o actor-guia comunicou: "Agora vamos subir à teia." Teia? Interrogavam no silêncio de quem nem conseguia articular palavra. Os seus olhos urdiam a pergunta tecida a fios da mais pura seda inocente. Quase que verbalizavam "Então, num teatro há teias em vez de tecto?"

Subimos... por umas escadas que serpenteavam no ranger da idade. Ao chegar ao ponto mais elevado daquela sala, os meus lindinhos nem queriam acreditar que estavam por cima do palco, num emaranhado de estruturas metálicas, cheias de cordas, projectores, cenários enrolados, mecanismos estranhos, roldanas prontas a iniciar a sua função. Era aquilo a teia? E as aranhas?

O actor lá ia explicando a importância extrema daquela secção da sala. Nada funcionava em palco, se a teia não funcionasse. O sucesso do plano inferior, dependia da habilidade do superior!

No regresso, quiseram estabelecer a comparação "S'tora! A teia é como se fosse Deus?".
Não os quis chocar com a minha não crença religiosa, mas argumentei que nem todos os teatros têm a sua teia, e isso não impede o sucesso das representações em palco...
...tal como na vida!

Ensaio sobre distâncias...

(Penhas da Saúde - foto de Marina)

Numa acepção simples, quanto dista o longe? A distância utiliza que medida de longitude? Quando se está longe, onde se permanece?

Imaginemo-nos em cima de um palco... a sala de espectáculo cheia, como convém. Observemos a sala. Convencionou-se, sabe-se lá porquê, que a distribuição dos lugares por um espaço de assistência devia obedecer a critérios bem definidos. O do valor monetário. Vejamos. Camarotes, os mais caros! Galeria (se ainda existe), os lugares mais baratos. Ainda num plano superior, o balcão, por vezes dividido entre primeiro e segundo, a preços mais ou menos. Finalmente, a plateia. Ali tão perto, mas não acessível a todas as bolsas.

Transpondo metaforicamente o palco para a nossa simples existência, vivemos numa sala cheia de pessoas, que ocupam os seus lugares da Galeria à Plateia. Serão os mais importantes aqueles que nos observam do Camarote? No entanto, quantas vezes, em dia de espectáculo, os camarotes estão vazios? E na Plateia? Não será nesse espaço tão exposto que os aplausos parecem forjados, com pouco entusiasmo, diria eu? E nessa sacada saliente, com vista privilegiada que é o Balcão, estarão os mais interessados na nossa vida?

Na medida da distância, quem está mais longe são os que ocupam a Galeria. Tantas vezes, os únicos que incentivam, sem pudores, a representação; os que apupam sem receio; os que aplaudem de pé (até porque daí só se vê bem de pé!).

Numa interpretação simples, as pessoas que estão mais perto de nós serão as mais importantes? Não sentiremos a sua obrigação, de lugar mais caro, de apaludir só por aplaudir? Que dizer dos que se resignam à distância? Não viverão, sem qualquer interesse, a clamar pelo nosso sucesso?

No palco, como na vida, não há longe, nem espaço para distâncias... há pessoas que nos transmitem o seu crer da forma mais simples: estando!

Ensaio sobre a crise...


Há uns anos largos, fui fazer uma formação sobre "valores". Não que os tivesse perdido, nem tão pouco esquecido a importância dos ditos na formação de qualquer ser humano. Na verdade, foi o título que me chamou... "A crise dos valores".

Falava-se, já na altura, que os alunos andavam contrariados na Escola, que não tinham objectivos para o futuro, que não queriam estudar, que... que... que nem sabiam o que eram "valores". Da primeira sessão, recordo um formador sem perfil para a comunicação, com um receio atroz de fixar os olhos dos seus formandos. Bem, na "verdade", devia ter expressado, desde logo, a minha "bondade" para com o jovem inexperiente. Mas não! Num sábado de manhã, quando a "harmonia" do descanso reinava lá fora, não me sentia preparada para qualquer acto de "justiça" forçada. Queria a minha "liberdade", longe de alguém que nem se dignava a ver com "igualdade" os seus pares. Afinal, também ele era professor.

Serve esta imensa explicação para relembrar o que ficou dessa formação. Nada. Ou melhor: um discurso monótono de palavras decoradas, definindo a crise "perturbação que altera o curso ordinário das coisas..."

A crise, assim apresentada, remete-me para o meu estado de fim de Domingo. Algo perturba o meu curso normal. Falta-me vontade para escrever. Estou em crise!

E num acto de "solidariedade" para comigo, vou parar de o fazer... A minha crise passará amanhã. (ao contrário da outra)

Ensaio sobre o deserto...

(Antas - foto de GMV)


Há dias, na nossa vida encenada, que parecem citações de grandes obras. Palavras ficcionadas sinónimas de realidades vividas.

O dia foi de um Outono que resiste à despedida das cores do Verão. O Sol imperou, magnânimo, num espelho de céu azul. A agitação das pessoas anónimas, na azáfama do dia-a-dia, vestiu-se com as tonalidades fortes e claras. Dia quase perfeito para o ressurgir de alegrias e vontades inexplicáveis... a minha era simples: citar!

Dessa obra intemporal, dessa aventura sem idades, pela imaginação de Saint-Exupéry: " - O que torna o deserto bonito - disse o principezinho - é ter um poço escondido em qualquer lado..."

Há dias assim... no meio de um deserto de ideias... no avistar de uma imensidão de nada... na aridez de sentimentos... no ermo arenoso de valores... é fundamental crer que existe um qualquer "poço"!

O meu, hoje, estava escondido na sala 20. O texto era apelativo... porque cheio de registos familiares da nossa querida língua. Nada dificultava a compreensão, nem aquela intrusa palavra - "promiscuidades" - cujo sentido se tirava pelo contexto. Inocente ilusão. A "encenadora" gosta de complicar.

O arranque de ideias começou devagarinho... como quem segura o saca-rolhas, sem exercer a força necessária para entranhar a cortiça. Mas o objectivo era destapar o gargalo, fazê-lo soar num grito de libertação.
Conclusão de uma aula: o deserto é mesmo bonito! No "poço" dos meus lindinhos, matei um pouco da minha sede.

Solilóquio...

(Paredes de Coura - foto de GMV)


Na arte dramática, não é difícil depararmo-nos com solilóquios. A peça fica, sem dúvida, enriquecida com esses momentos em que a personagem extravasa os seus pensamentos, na tentativa de lhes encontrar uma lógica... sem se dirigir a ninguém em particular, a não ser a si mesmo.

São vários os exemplos destes autênticos pensamentos falados, registados no texto dramático, ao longo dos séculos de existência do Teatro. Que dizer de Hamlet e do seu tão famoso "Ser ou não ser"? Bem, na verdade, eu teria muito a dizer, uma vez que o mais interessante é mesmo a sua divagação sobre o "Morrer! dormir; dormir, sonhar talvez?"

No palco desta nossa vida, há ocasiões em que é premente parar um pouco e tentar organizar o que nos vai pelo pensamento. Tentei. É verdade que tentei... muito, ou seria mais correcto dizer muitíssimo? Nem o superlativo me valeu, confesso...

Fazer um solilóquio requer o sentido da ordem, o valor da lógica. E, por estes dias, nem ordem, nem lógica têm assento na minha tão vazia cabeça. Vazia? Se calhar nem é o termo adequado... Cheia, até não caber mais!

Sou dada a uma boa reflexão. Gosto desse exercício introspectivo. No entanto, um bom solilóquio não se dirige a ninguém em particular, e os meus pensamentos desordenados reclamam públicos bem definidos.

Confusa? Talvez... por isso não me concebo em personagem. Prefiro a Encenadora.

No outro lado...

(O outro lado do tempo - de Teresa Ribeiro)

"Nada, nada... Isto está tudo errado... A cousa é mais complexa do que eu julgava. Isto é agora muito fundo..." (esta é mesmo de Pessoa)

Na complexidade de sentir tudo errado, no instantâneo do profundo, na não existência... procurei o outro lado do tempo.

Um tempo de crenças na natureza humana, sem necessidade de deuses inventados. Onde os sons eram os primeiros, sem ruídos poluidores de palavras vazias. Quando a alegria pelo desconhecido clamava pelo conhecimento.

Procurei o outro lado do tempo, pleno de rostos ávidos pelo aconchego de quem sabe. Sem submissões impostas, mas desejadas. Nesse outro lado, o tempo parou. Com receio dos senhores do tempo. Para evitar cronologias desadequadas.

Um tempo onde as páginas em branco reclamavam pela escrita, onde as salas se silenciavam pelas palavras a beber, onde os quadros negros eram depositários de nervosismos de quem quer fazer bem.

Nesse tempo, num outro lado, as pessoas eram elos fortes de uma corrente que não agrilhoava. Prendia, sem amarras, para toda uma vida... ao longo dos tempos.

Era um palco sem medidas, de actores felizes, na consciência de que a peça seria reconhecida.

Hoje, o tempo perdeu-se. Procura lados escondidos em sentimentos de revolta. O tempo virou burocracia, esmagado por toneladas de papéis produzidos em série, numa luta contra o tempo. Hoje, a corrente partiu-se, sem réstia de piedade. Os elos permanecem à espera de novas directrizes. É um tempo de nada. "Nada, nada. Isto está tudo errado."

N'o outro lado do tempo, houve felicidades sentidas... Hoje, é dia do Professor!!

Ensaio repetido...

(de Carlo Rochas)

Hoje, porque estou vazia, repito palavras... Há momentos em que acredito, inocentemente, que se as dissermos muitas vezes, elas tornar-se-ão verdade...


Parece que, um dia, Fernando Pessoa disse, ou escreveu, algo como "Pedras no caminho? Guardo todas. Um dia vou construir um castelo."

Conheço quem não goste do Poeta (com maiúscula, sim, porque o Poeta). Provavelmente, pela dificuldade de denotar as suas palavras, de entender as razões da complexidade do seu pensamento. Mas, quando lemos 'ditos', como o citado, devíamos imaginá-lo, sozinho, numa qualquer noite de Outono, sentindo, na antítese, as alegrias e as amarguras da vida. Sendo Pessoa, simplesmente pessoa, enfim.

Quanto mais leio este grande fazedor de palavras, mais o respeito e admiro. Muito do que escreveu poderia figurar como exposição/conflito/desenlace de qualquer 'peça' humana. No fundo, mais não fez do que procurar, como numa verdadeira demanda, a felicidade. Não é isso que todos queremos alcançar?

Se, nesse contínuo procurar, encontramos obstáculos, pedras, pedragulhos, penedos, montanhas duras e frias, desistimos? Não pegamos em rosas, porque têm espinhos? Não gostamos de cactos, porque picam?

Olhemos a vida como um desafio. Tornemo-nos autores da nossa história. Sejamos Cavaleiros andantes, de espada em punho, derrubando dragões imaginários... e outros não. Não tenhamos medo dos sentimentos...

A felicidade que todos almejam só pode residir no interior de cada um. Na capacidade de ver óasis, na imensidão do deserto. Na coragem de aceitar um 'não', sem o sentir como florete rasgando a carne. Na valentia de recusar a vitimização fácil.

Guardemos as pedras que aparecem no nosso caminho. Servem como ensinamentos nesta nossa vivência. Porque o mais importante é mesmo a própria vida... Esse Castelo erigido pela força das pedras que apanhámos, ao andar por aí.

E não tenhamos pejo em reconhecer que até um cacto tem a sua beleza! Que seja mais um adereço no cenário desta minha peça feliz!
(tão vazia... tão vazia... que até alguém teve de me alertar para o facto de a frase nem ser de Pessoa.)