De volta aos ensaios...

(foto de GMV)


Há incidências, no nosso quotidiano, que mereciam uma reflexão apurada. Muitas vezes, ocorrem pequenas situações que ganham a dimensão indescritível de um dia repleto de emoções.

Ora bem, hoje era dia de ensaio. Como habitualmente, percorri o espaço que dista uma sala repleta de vozes estridentes e esse extraordinário espaço, tantas vezes pintado a silêncios, que é a Sala Gil Vicente. Pelos pátios, as correrias do costume, numa luta despropositada contra o vento que se fazia sentir. As folhas dos plátanos, arrancadas por sonoras rajadas de Éolo, simulavam um bailado desnorteado. As palmeiras vergavam impotentes ao peso invisível desse deus, filho de Neptuno.

De repente, senti uma sombra silenciosa que caminhava atrás de mim. Voltei-me, com aquela sensação de quem tem em si o olhar de outro alguém. Era uma das minhas jovens actrizes. Uma aprendiz do fingir! "Boa tarde, Professora." Sorriu timidamente. "Posso pedir-lhe um favor?" Não sou de favores - pensei! "Claro que sim." - respondi. "Posso tocar um pouco, hoje, no ensaio?".

O texto que andamos a ensaiar é uma adaptação da peça Antes de Começar. Não cabem momentos musicais. A acção vive da força das palavras. Do sentir do diálogo. Dos gestos das personagens. Anuí.

Já com o meu pequeno grupo em palco, pedi-lhes que esquecessem, por momentos, os papéis. Iríamos improvisar. Entraria, na nossa peça, um momento musical, nascido da vontade da tocadora de flauta transversal.

Assim foi. Os meus jovens actores improvisaram o texto, inventaram-se em novas falas, vestiram-se de outros sentires... e, num silêncio sem anúncio prévio, a flauta falou. As notas saíram na torrente de quem sabe o que diz. A melodia ganhou contornos de entoação discursiva. O monólogo tocado perpassou o sentir do coração.

Há incidências que... que... que... me levaram a decidir, no momento, que havia uma peça a reescrever. Onde uma personagem pudesse ser, simplesmente, uma flauta transversal!


(E há ensaios onde não cabem mais palavras...)