Ensaio sobre a opinião...

(foto de GMV)


Continuamos, pelo palco escolar, esse caminhar sereno que é o estudo do texto poético. Na verdade, a tranquilidade foi conquistada, ao longo de dois anos, arduamente, diria, com o enfrentar das resistências iniciais, com o quebrar dos preconceitos interiorizados... de que a poesia é difícil de entender... de que só as raparigas fazem poemas! Muitos dos meus lindinhos, quando me chegaram às mãos, nunca tinham escrito um poema... nunca tinham declamado... e alguns nem os nomes dos nossos poetas conheciam.

Gosto de desafios... por isso, falo em serenidade. Os mesmos alunos já discutem, com segurança, mensagens que perpassam nesses textos outrora terríveis, tentam desfazer ambiguidades, deduzir sentidos implícitos, denotar conotações, reconhecer os usos figurativos da linguagem. E fazem poesia. Eles, como elas.

Nas últimas aulas, dissecámos poemas de Eugénio de Andrade, de Sophia, de Alexandre O'Neill, de Fernando Pessoa... encaramos cada um deles como uma montanha que urge escalar... difícil a subida, no entanto, ninguém desiste. Há sempre uma mão que se estende no amparo, uma palavra que incentiva o não desviar do trilho, um sorriso que recolhe o suor do esforço. E, quando se atinge o cume, tem-se a certeza de que a dor que as pernas carregam pode enfim descansar, nessa pedra revestida de mensagem decifrada. Este tem sido o nosso trabalho: no espaço natural da poesia, conquistar poemas.

Num dos momentos de descanso, pedi-lhes que escrevessem um texto de opinião. Os meus meninos gostam de opinar. "Sobre?" -perguntaram... Sobre a "poesia", óbvio!

Bem, li o resultado dessas produções escritas, há pouco... e colou-se um sorriso na minha cara, à medida que ia lendo as suas opiniões. Afinal, os meus alunos, [esses que tanto resistiram a subir ao palco do estudo do texto poético], até para dar a sua visão pessoal sobre um assunto... até aí, fazem poesia: "Creio que a poesia é a chama que arde no meio do glaciar. É cascata de palavras cristalinas, fundidas, como o ferro, no forno da imaginação (...)." [E porque não?] Enfim, gosto de ser Professora.

Hoje, como ontem...

[foto de GMV]

Quero poder acreditar que és livre, Liberdade... hoje, como ontem.

Crer que, todos os dias, cortas amarras à submissão das cores. Que és autónoma das razões floridas.

Imaginar-te, Liberdade, alimento dos sonhos de ser... [longe de ementas programadas para um dia no ano].

Confiar que voas, eternamente voas, negando rastejar às vontades políticas.

Ontem, como hoje, tenho-te em mim. Não te guardo. Porque és livre. Só te peço, Liberdade, que me deixes caminhar ao teu lado.


Ensaio pelo "moinho"...

(foto de Luís)

Por estes dias, no palco da Língua Portuguesa, andamos ocupados com as palavras. Dito desta forma parece ridículo. Afinal, o que seria uma aula de Português sem palavras?

Clarifico. Iniciámos o estudo do texto poético! Sem poemas... ainda. Afinal, não se constrói uma casa sem tijolos... certo? Vestimos, então, o fato-macaco e metemos mãos à obra. Acarretámos tijolos...

Começámos pelas fundações, pelos alicerces do poema. As palavras! Fiadas de ladrilhos no chão da língua... Fizemos um pouco de tudo com as palavras... já as saboreámos nas suas doces sonoridades; sentimo-las no peso das oclusivas; arrastámo-las por campos consanguíneos; despimo-las de amarras semânticas; negámos a denotação e vestimo-las conotativamente... Temos tido muito trabalho! Felizmente.

Ora, hoje, resolvemos, aos poucos, juntá-las em expressões... idiomáticas, também. Lancei a primeira "beber as palavras"... saíram, quase em catadupa, mais algumas, explicadas pelos meus lindinhos: "medir as palavras", "ser de poucas palavras", "arrastar as palavras", "cortar a palavra", "dar a sua palavra", "mastigar as palavras"... e o desafio começou. Dirigi as perguntas: Que palavra "cortaria" da sua vida? Que palavra "arrastaria" por lhe ser pesada? As respostas foram surgindo, primeiro com estranheza, depois devidamente justificadas.

Até que nos centralizámos na pergunta: Que palavra moeria no seu "moinho" para lhe servir de alimento? [a Professora nunca facilita!] Reflectiram um pouco, e aventaram a lista das suas sementes: "sonho", "alegria", "amizade", "luz", "amor", "felicidade"... Quase no final de todos terem alimentado o seu "moinho", um dos meus lindinhos, oriundo da Guiné, fugido há poucos anos a uma vida escrita a sangue de guerra, pronunciou, na sua voz meiga: "PAZ!". Todos conhecem a sua história... talvez por isso se tenha feito um momento de silêncio. Senti, por instantes, uma turma inteira feita vento, soprando nas velas do meu aluno-moinho... para que o alimento nunca lhe falte.

Ensaio sobre o [não] dito...

[foto de GMV]

A noite fora previamente marcada, como tantas outras, para essa tertúlia que se alimenta de amizade. Durante o jantar, serviram-se as últimas novidades, partilharam-se encontros e desencontros, desejos de viagens adiadas, projectos de curto e longo prazo. Conversas de sempre... regadas a lágrimas de tanto rir.

Nunca esmorece o assunto, nestes encontros. Como a noite não reclamava ainda os braços de Morfeu, mudámos de palco, sem abandonar a vontade imensa de deixar fluir o discurso. As luzes difusas e a música compassada eram o cenário quase perfeito para o esgrimir de novos argumentos. Relações. Resolvemos falar de relações... as que perduram, indiferentes ao passar do tempo... as que se gastam, na diferença do sentir... as que se renovam, no transpor dos obstáculos... as que fingem, na manutenção do contrato assumido... as que acabam... as que nascem do nada! Acaloraram-se as vozes na defesa das diferentes perspectivas. O amor pode, ou não, acabar? Então? E não pode, também, durar eternamente? E coexistir? Há espaço para vários amores?...

O despique dialéctico poderia ter durado até de manhã... nunca teríamos chegado a um entendimento... havia muito a dizer. Como disse cada presença, em torno daquela mesa... tanto!

Contudo, no regresso a casa, nem a chuva miudinha, que caía serenamente na calçada, me "lavou" a sensação de que, no acreditar do tanto que pronunciei e defendi, calei o mais importante!
[...fica para a próxima!]

Ensaio sobre o fingimento...

(foto de GMV)


O dia amanhecera vacilante no recinto escolar. As palmeiras tanto sorriam ao Sol, que a custo rompia a negrura das pesadas nuvens, como se vergavam no dilúvio repentino da chuva torrencial. Regime de aguaceiros, que baralhava os sentires de quem aguardava o toque de entrada.

Quinta-feira. Dia de ensaio. Os meus jovens actores esperavam-me junto à porta do nosso recanto de tantas representações. Entraram. Traziam no olhar o nervoso de quem sente que se aproxima a data das grandes apresentações, e começa a percepcionar a correria da passagem do tempo.

Rapidamente, se prepararam para o início de mais um ensaio. Para o palco, subiram os que iniciam a peça. Reparei que uma das minhas lindinhas, actriz de papel principal, não partilhava do entusiasmo dos outros. Arrastou-se até ao espaço, marcação de cena, no lado direito do palco. A representação começou. E as reclamações do elenco também: "Ó Professora, assim não dá!". A minha aprendiz das teatrices falhava constantemente as suas deixas... o seu olhar, longe do palco, perdia-se pela imensidão da sala. Os outros esperavam pelas suas intervenções, no limite da paciência. De vez em quando, olhava-me, solicitando, num silêncio culpado, a ajuda para a fala seguinte. As falas? Dei-lhas. Todas! Até ao final do ensaio.

Tocou. Era tempo de terminar. Os meus lindinhos foram saindo, sem pressas, comentando o desastroso regresso aos ensaios. A minha personagem principal ficou para o fim. Esperava as minhas palavras. Perguntei-lhe o que se passava. Junto à porta. Sorriu. "Nada, Professora!" Não insisti. Saiu. Preparava-me para apagar as luzes, quando regressou... "Sabe, Professora? dias em que não me apetece fingir o que não sou." E foi embora. Sem ouvir as palavras que eu não disse, mas ecoaram no meu pensamento: "Como sei!..."

Uma onda...

(foto de GMV)

Pairam segredos no bramido do mar. São de lágrimas salgadas... as saudades espraiadas pela areia.
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Dissolvem-se sonhos no ímpeto das águas agitadas.
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Apazigua-se a onda numa maré-cheia de porvir.




[... breve o regresso aos ensaios reais...]

Uma árvore...

(foto de GMV)

Porque a Natureza também espelha momentos de vida...

tranquilizam-se as águas do imenso rio... o rio que chama, num namoro descarado, a verticalidade de uma árvore...
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estendem-se, então, ramos afluentes de serenidade, na procura do desejo feito líquido...
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Arborescem sentimentos nesse caudal que nunca pára...

Uma flor...


(foto de GMV)

Encontrei-a assim a meio da manhã... Indaguei! Não, não chovera na noite anterior... e era cedo, muito cedo ainda, para regar.
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Seriam lágrimas caídas dos olhos de alguém? [eu não choro]... Ou meras gotas de suor no esforço da permanência?
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A flor persistiu em espargir um silêncio alagado... no meu jardim!

Ensaio pelo intervalo...

(foto de Luís)

A representação, por este palco, faz-se também de intervalos. O pano fecha-se, cansado dos actos maiores... a plateia esvazia-se, indiferente ao climax do enredo... os projectores apagam-se, gastos de tanta artificialidade. Fico eu. Num entreacto.

Posso, finalmente, encenar a distância que medeia entre o fim e o princípio, por esta ordem, porque a verdadeira. Construo, então, avidamente uma peça de cenas soltas, quadros aleatórios, personagens sem papel definido, em teatros por inventar. Abdico do ponto, dispenso contra-regra, ignoro as vozes que me chamam dos bastidores.

Alinho, num desalinhavo de sentir, as falas que suportarão cada deixa. Falas curtas, projectadas em vozes aladas... falas absurdas, propagando certezas num anfiteatro sem velário. Sai a trama, urdida em fios de palavras soltas... uma pausa... uma estrada... uma casa... um jardim... um sorriso... uma hortênsia... um segredo... uma noite... um monte... um silêncio... uma estrela... um desejo. Nasce a peça... no anseio de outras representações.

Com as asas que se enraízam neste palco... amanhã, chegarei voando a esse intermédio de mim.

No intervalo [da verdade]...

(foto de GMV)


Como definir uma verdade? Como decretá-la de acordo com o real?

Esse real aparente, que muda de cor a cada volta do caleidoscópio...
... espelho reflector dos cristais da existência.