No intervalo [persistente]

(foto de GMV)

Ainda que as palavras fossem pequenos batéis, à deriva, sem arrais...

... e os pensamentos bolinassem num mar de razões naufragadas...

... não desistiria de fundear nesse cais.

Ensaio pelos sentimentos...

(foto de Luís)


Era uma miúda de olhos claros e brilhantes. Desses que se alimentam do espanto da vida. Desses que anseiam viver experiências ao sabor do arco-íris. Bebia todos os ensinamentos, com a sede inocente de quem vê sempre oásis num desértico caminhar.

Gostava de brincar com as palavras. Vê-las nascer no papel branco, numa dança que, primeiro, se revelava rudimentar e, depois, ia ganhando os gestos delicados de uma qualquer valsa.

Um dia, foi-lhe pedido que escrevesse um poema sobre os sentimentos. Assombrou-se com o solicitado. O papel ganhou a dimensão infinita de um céu negro sem o ponteado de estrelas. A sua mão resistia, numa luta invisível, a pegar na caneta. Os seus olhos claros e brilhantes suplicavam uma mudança de tema. No entanto, a sua consciência sussurrava-lhe que teria de o fazer. Mergulhou, então, nesse mar revolto de inspiração, dos seus dias vivenciados em maré baixa, e escreveu... escreveu sem parar um só segundo, numa exaltação de raiva contida... quebrando grilhões a cada palavra.

Sabia que, de seguida, tinha de o ler para ser comentado. Era sempre assim. A partilha era também aprendizagem. Levantou-se, quando chegou a sua vez, abriu a sua voz meiga e suspirou: "Abri o baú da vida...". E foi lendo, numa mágoa orgulhosa, num crescendo de tom que prendia as lágrimas expectantes... quase no final martelou cada palavra: "Mas os sentimentos,/Esses voaram com o vento/E juraram nunca mais voltar!/ Fechei o baú,/Indelicadamente/E tranquei-o com a chave do sentir/Para sempre!".

Voltou ao seu lugar e esperou o comentário, que não chegou a existir... [afinal, como comentar sentimentos?]

Ensaio pelos bastidores...

(foto de GMV)


Um dos espaços que mais aprecio, num teatro, é esse intervalo entre o tudo e o nada a que, numa acepção simples, se chama "bastidores". Em dia de grandes representações, é por aí que permaneço, sentindo o nervosismo próprio de quem tem de entrar em cena, incentivando no silêncio do olhar esse pisar de palco decidido.

Os bastidores são um fervilhar de emoções contidas. Uma mão que se aperta... um sorriso que se oferece... uma lágrima que, rapidamente, se seca.
Hoje, cansada de tantos papéis desempenhados, recolhi-me nos bastidores de mim... vasculhei nos meus escritos e desencantei as palavras guardadas... essas, que não almejam o abrir do pano.

[Procuro-me no reflexo de um tempo que não volta, que se apaga! Contemplo-me no mais profundo de mim… Seguro-me no espelho de uma História sem fim! Sinto-me presa num passado selvagem. Não olho para trás. Procuro-me no mistério da cor que se aviva; no cambiante esquivo que se esconde. Quem sou? As garras prontas para a pureza que se oferece. Quem sou? (Caem palavras mortas nas páginas escritas de vida!) Quem sou? Repito! Escondo-me na forma que não tenho. Espreito na metade que ficou… Quem sou? O tempo flui, a viagem começou! Tiraram-me a máscara: Finalmente sei! Já fui Eu... agora, quem serei?]

... não sei quando, nem porque, as escrevi... só sei que as guardei por detrás do palco.

Ensaio pela Poesia...

(foto de Luís)



Rasgas o leito
do meu imaginar,
como se uma quilha
tivesses...

Nesse teu puro e límpido Oceano,
nada te faz parar,
como se ave (que migra) fosses.

E um refúgio vens procurar...
no meu eterno Sonhar!


[Hoje é o seu dia... e como, para mim, todos os dias são poéticos, fica o poema feito numa aula, por um dos meus lindinhos.]

Ensaio pela procura...

(foto de Luís)


Quando entrou, pela primeira vez, na minha aula, trazia, no olhar acanhado, todas as histórias que ouvira a meu respeito. Talvez, por isso, nem tenha olhado para mim. Sentou-se na última fila e, desde logo, mostrou um gosto imenso por aprender. Era um miúdo tímido, que nunca lera um livro por iniciativa própria, que tratava as palavras escritas com o desleixo de quem não lhe reconhece qualquer valor. Queria ser cientista e, na sua inocência dos treze anos, não compreendia, ainda, a necessidade de uma aula de Língua Portuguesa, que o roubava ao Clube da Ciência, onde o seu quase pronto robot o aguardava.

Desaparecia na cadeira, quando solicitado a uma participação oral. Tinha um discurso atabalhoado, numa gaguez que não conseguia controlar. Cedo percebeu o martírio de cada aula que teria comigo. Na primeira vez que teve de fazer uma exposição oral, libertou as encabuladas lágrimas, quase implorando que eu o mandasse sentar. Fingi que não vi. E, durante os dez minutos, que se lhe devem ter afigurado dez horas, lá foi falando para essa plateia chamada turma, molhando cada palavra num sal de raiva. Quando terminou, comentei seriamente o seu momento de expressão oral, apontei os aspectos negativos e salientei os positivos. Sequei cada lágrima num dizer formal, como quem fala com um adulto.

O tempo foi passando... o meu lindinho foi libertando, a cada lição, sem receio, as suas palavras. Quando se aproximou o tempo de uma segunda exposição, pediu-me, num fim de aula, com os seus modos correctos e meigos, se eu não me importava de não olhar para ele durante a próxima exposição oral. "Não leve a mal, Professora, mas os seus olhos intimidam!". "Com certeza.", respondi... e, no dia seguinte, segurei-lhe esse olhar nervoso, de início ao fim da sua actuação.

Bem, passado um ano e meio, no dia de hoje, o meu aluno deu uma aula. Orgulhoso, a cada palavra verbalizada com segurança, durante quarenta e cinco minutos, numa aula de Formação Cívica, apresentou o seu trabalho de nome sugestivo "O pensamento de cada um"! O seu discurso começou sério, encarando nos olhos cada um dos elementos do seu público, com uma pergunta que me soou a deixa dramática: "O que fazemos aqui?" Seguida da resposta: "Andamos, somente, à nossa procura!"

Não me apetece reproduzir nada mais daquela aula... guardá-la-ei, por todas as razões, no meu camarim-memória, onde me visto para este palco.

No final, fiz o meu elogioso comentário... e recebi a dádiva da resposta num sorriso espontâneo : "O modelo também não é mau..."

No intervalo [da saudade]...

(foto de Luís)


Quando aquela casa se abre...
.
sente-se o vazio da indizível ausência.
.
E o branco-sujo das paredes grita o silêncio da saudade!

Ensaio sobre o "palavreado"...


O ensaio podia começar com um silogismo imperfeito. Digo imperfeito, porque este palco não se pretende filosófico. Ora cá vai: eu sou filha do meu pai... o meu pai é filho do Minho... logo, eu só posso ser filha dessa terra que tanto gosto.

Nesta asserção simples de vida, fundei toda a minha infância e juventude. Já algumas vezes, neste teatro de mim, falei das minhas recordações desses dias, que terminavam sempre, após quase um mês de férias em viagem, nas terras verdes, no coração do Alto Minho.

Quando miúda, gostava de me embrenhar pelos milheirais, saltar valados e descer o caminho até à fonte, pintando de vermelho as mãos, no apanhar das amoras que sorriam das silvas. De quando em vez, no meu sempre espantado saltitar, cruzava-me com uma dessas personagens tipicamente minhota... o rosto despontando entre o braçado de erva equilibrado à cabeça... a mão carregando a enxada que abria os regos de água. Invariavelmente, nesse falar de sotaque inconfundível, nascia a pergunta. "De quem és tu, minha menina?" E a menina lá desfiava o rosário da árvore genealógica: "Sou filha de fulano, neta de beltrano, da família "Y", ali da casa do... " Depois, seguia-se o "palavreado": "F.#&?-se, tens o sorriso da tua avó!". Ou então: "Tens uns olhos do C#&?#*!!". Confesso que, das primeiras vezes, fiquei chocada... sem perceber se o meu sorriso era uma ofensa para a minha avó... se os meus olhos lembravam mesmo... fosse o que fosse!

Rapidamente, percebi a dimensão das palavras, meras interjeições, talvez com alguma admiração à mistura. Linguajar único! Ao fim de dois ou três dias, eu era minhota no dizer de entoação própria... mas nunca fui capaz de verbalizar uma "asneira"! Até hoje. [porque, afinal, há palavras que não gosto!]

De todas as expressões que se vestem de regionalismos, ou não, havia uma que eu adorava: "Binde à minha beira!" E eu ia, apesar de não conseguir apagar do pensamento que "beira" me lembrava abismo, ou, nos melhores dias, margens equidistantes de um rio!

No entanto, a pérola deste "palavreado" natural chegava com qualquer despedida. No meu Minho, nunca houve um "até à próxima", um "adeus"... era sempre "continuação!". No pensar simples de uma menina que fui, ouvir "continuação!" era a certeza de que eu voltaria... logo... sempre... para continuar a viver na plena sinestesia do verde!

Ensaio pela diferença...

(foto de Luís)


No palco, como na vida, gosto de ensinar aos meus alunos a respeitar diferenças. Digo no palco, porque visto, verdadeiramente, o papel de encenadora duas vezes na semana. Digo na vida, porque grande parte da semana deles é passada comigo. Serão mais de trezentas aulas, ao longo de um ano lectivo, só para a minha direcção de turma. Cada turma é um colectivo heterogéneo, no desenvolvimento de competências, nos ritmos de aprendizagem, na aplicação de conhecimentos. Cada grupo de "Aprendizes de Teatro" é um elenco diversificado nas capacidades mnemónicas, na expressividade interiorizada de uma personagem, na colocação da voz... Tento, por isso, transmitir a importância de não discriminar pela diferença... seja ela qual for.


Serve a introdução para relatar uma aula recente. Gosto de ler para os meus alunos. Um pouco de tudo. Naquele dia, levara esse conto "A arca do menino que inventava poetas". Uma belíssima narração sobre a vida de um menino chamado Fernando, que gostava de inventar outros meninos, poetas como ele, com quem passava os dias a conversar. Ouviram, com a atitude de quem gosta que lhes contem histórias. No final, quase todos identificaram a personagem como Fernando Pessoa. De repente, a pergunta: "Ó Professora, Fernando Pessoa era maluco, não era?". A minha lindinha ainda não interiorizou muito bem o meu ensinamento. Respeito-a, por isso. Porque respeito diferenças. [a aula não acabou aqui, óbvio, tinha muito a dizer à minha menina!... o ensaio sim, porque disse o que queria!]

Ensaio no masculino...

(foto de GMV)

O ensaio principia com uma banalidade: não gosto de amarras! [Suponho que ninguém gosta...] E pratico esta condição de vida. Por vezes, sinto que a âncora pode descer, prender-se nos alicerces da existência. No entanto, a minha felicidade funda-se na certeza de que, sempre que quiser, posso vogar ao sabor do meu desejo, içar velas de liberdade nos mastaréus da minha embarcação. Zarpar na espuma sempre ansiada dos dias ditosos.

O ensaio continua com uma ideia repetida, tantas vezes, neste palco: porque rejeito peias, não gosto de dias "convencionados". Hoje, dia da Mulher... por descargo de consciências masculinas? Desse dia primordial de protesto no feminino, retenho só mesmo o protesto! Tudo o mais serão reportagens nos jornais, nas revistas, nas televisões, com estatísticas de violência doméstica, de escravidão sexual, de circuncisões violentas, de cancros da mama, de desigualdade salarial... Ou então, as breves entrevistas aos homens de flor na mão para, por um dia, homenagearem as suas mulheres. Ou ainda, grandes documentários sobre mulheres que se destacaram na política, na economia, na sociedade...

O terceiro parágrafo do texto figura-se numa certeza: não preciso deste dia. Sou feliz, e, por isso, vou escrever no masculino. Aos homens da minha vida, fragmentos do espelho que sou. Um reflexo feliz desse pai que me admira num silêncio orgulhoso, a cada adriça que conquisto... desse cunhado que me ampara, como um irmão, a cada sinal de tempestade... desse sobrinho lindo que não abdica da minha presença, a cada novo aportar... desse que me acorda, no calor de um sorriso partilhado, a cada dia por navegar... desse Poeta-Pessoa que preenche a minha alma, a cada tentativa de amainar vagas impetuosas... meras concordâncias gramaticais neste palco de condição feminina.

Hoje, mulher, como todos os dias...

De volta aos ensaios...[a mentira]

(foto de GMV)

Por vezes, no teatro escolar, saímos em demanda de novos palcos... espaços únicos para aulas repletas de outras representações.

Há uns dias, acompanhei a minha direcção de turma numa dessas incursões, organizada à luz dos conteúdos das Ciências Naturais. Apesar de toda a minha paixão pela Literatura, pelas palavras, pela minha Língua, interesso-me por outras áreas do saber... ou seja, qualquer que seja o assunto, quero mesmo é saber. Por essa razão, sempre que me convidam para estas aulas de portas escancaradas, vou... não renego chaves.

À nossa espera estava essa ficção que reúne todos os Oceanos num só espaço... uma tentativa de abarcar as profundezas do mar, encarceradas num edifício à beira-rio plantado. Oceanário, pois claro! Não me é estranho o espaço, conheço-lhe bem o tom cerúleo. No entanto, e por ser uma experiência de aprendizagem, tínhamos uma monitora expectante, para iniciar a visita, dentro de uma sala [?], pronta para as mais diversas explicações. Os meus lindinhos provaram que são atentos. Não houve relações entre os seres que os espantassem. Dos benefícios do mutualismo, à desarmónica vivência dos predadores, dos parasitas aos hospedeiros... tudo foi claramente repetido a uma jovem deliciada com as intervenções avezadas.

Finalmente, lá seguimos para as profundezas dos mares, para confirmar em presença o que fora dito no espaço reduzido de um compartimento escuro e abafado. Sentados no chão, absorvendo as cores todas em tons de azul, os olhos brilhando na diversidade marinha apresentada, os meus meninos vestiram o silêncio da admiração. A monitora, de vez em quando, chamava a atenção para um dos seres que bailava indiferente pelo aquoso território. De repente um braço no ar! "Sim?", perguntou a jovem técnica de biologia marinha. O meu lindinho "Ó Rita! Porque está tudo tão calmo? Onde andam os predadores? Porque não se vêem parasitas em cima de hospedeiros?" Não resisti! É quase certo que gargalhei! A resposta pronta: "Ah! Isso! Bem nós alimentamos todos os seres que estão a ver! Era estranho ver aqui um tubarão à dentada..." O meu aluno: "Mas então isto é uma grande mentira! Estou a olhar para um Oceano que não existe na realidade!".

Nem mais. Gosto de alunos que verbalizam o seu pensar. Então, agora, o Homem também quer falsear a Natureza? Mostrá-la numa verdade artificial?

Regressámos ao fim do dia, princípio de noite... e eu, orgulhosa do meu menino, só pensava na "mentira"... essa ilusão de vida que tanto insistimos em viver.

No intervalo [lembrei-me]...

(foto de GMV)

No lar da minha infância mora um piano. Preto. Brilhante. Imponente. Senhor único da sala principal, dessa casa onde cresci, plantado pela vontade indómita do meu pai, que queria, porque queria, fazer de mim uma pianista! Esse foi o grande problema. Eu era uma jovem insurgente. Sempre gostei de contrariar o meu pai.

Recordo, com certa nostalgia, confesso, algumas aulas, de pauta à frente, pés nos pedais, mãos nas teclas, uma voz que me dizia "Comece!" e o meu pensamento transformava claves em palavras, teclas pretas em histórias de encantar... resistia! Quantas vezes, o meu paciente pai se sentava ao piano, ao fim da tarde, e tocava, enquanto eu, no meu quarto, percebia a intenção e fingia nem ouvir.

Comecei a tocar sozinha, longe das aulas que abandonei... só abria o piano, quando o vazio enchia a casa. Adorava improvisar sem a prisão de uma pauta. Sem a presença de incautos ouvintes. Mas nunca aprendi a tocar! Nesses momentos, a casa respirava os sons do meu desafinado sentir... as paredes brancas reflectiam o segredo partilhado... as teclas doridas, [ainda ressoa em mim o seu lamuriar], renovavam o meu ser. Depois, fechava o piano e, serenamente, voltava para esse instrumento que sempre quis tocar... as palavras.

Hoje, na sinfonia incompleta que escutei na minha vida, lembrei-me do meu piano... como se cada tecla contivesse um compasso da minha história.

Um dia destes, volto a essa casa atenta e dou uma alegria ao meu pai. Tocarei para ele!