Ensaio pelo não-ensaio

 

     Lá pelo palco escolar, falta o Teatro. Todos os dias, os aprendizes de ator fazem a pergunta "Professora, quando começa o Teatro?". Já nem sei como responder. A normalidade foi afetada, a nossa normalidade representada foi proibida. Escondida por trás de uma pretensa pandemia.

    Já nem sei que diga aos meus jovens a quem interromperam o "fingir". Tiraram-lhes o palco dos pés, fechado na escuridão de um auditório vazio. "Professora...", o som lamurioso de uma vontade reprimida. Já nem sei como fugir daqueles olhares pedintes, sedentos de um pano que se abra às suas representações.

   Há viroses inomináveis, como esta, que roubou os ensaios aos meus meninos!

   Já nem sei.

 

Ensaio sobre as nuvens

     Aguardemos, calmamente. As pedras lá estão, resistindo às agruras do tempo. Ele que passe. Aguardemos, sem perder a paciência. A mãe-d'água resguarda-se e permanecerá. Aguardemos, então, que os dias corram ao encontro das nuvens.

Ensaio sobre a saudade tamanha...



       Ontem, pelo palco escolar, os meus jovens alunos vestiram a pele de poeta e fizeram, talvez, as suas primeiras poesias. Resistiram, primeiro, suaram depois para cumprir a tarefa [palavra nada poética]. Após um breve intervalo, unicamente para a ida ao alívio das necessidades, visto que a pandemia não nos larga, voltámos ao recôndito espaço da aula.

    Por detrás de máscaras, literalmente e não metafóricas, lá foram respirando fundo, para a leitura dos versos arrumados com receio. Criaram pequenos textos que leram, que comentaram, que os levaram à gargalhada, ou à mais profunda reflexão. Afinal, o pretenso poema tinha um acréscimo importante: seria a apresentação poética de cada um. Já quase no fim da leitura, surge a expressão, [para não lhe chamar antecipadamente verso], lida com emoção, "recolho-me num grito silencioso". Foi naquele momento que o dia desabou na minha saudade. 

    Uma saudade tamanha da minha amiga, perdida, em maio, sem que eu tivesse tido tempo de interiorizar que o seu tempo acabava. Uma saudade tamanha do seu humor cáustico, da sua gargalhada sincera, dos seus conselhos, nunca pedidos, sempre oportunos... uma saudade tamanha da presença tão sua, tão Célia.

     "Um grito silencioso" escreveu o meu jovem, feliz por ter conseguido a antítese há pouco aprendida. O recurso expressivo lembrou-me que era dia de aniversário. Só não haveria bolo, nem cantorias desafinadas, não haveria presentes de papel rasgados ao jantar. Só porque tu já não estás.

 [que saudade!]


Ensaio sobre as marcas...


     Os anos vão passando e as marcas de cada vivência não enganam ninguém. Estão por aí, nem todas visíveis, nem todas indolores.
     Este ano, delineou-se uma marca maior: a distância. A minha vida, de repente, passou a ser à distância (a minha e a de milhares, mas, não sei porquê, apetece-me ser egoísta). Os meus alunos deixaram de estar ali, observando-me, questionando-me, sorrindo para mim. As minhas aulas deixaram de ter a animação inerente a quem gosta de ver sempre o lado positivo das situações. Fiquei longe, tão longe, que, por política da Escola, nem os podia ver uma vez por semana, nessa coisa extraordinária chamada de sessão síncrona! Eram uns bonecos, na linguagem informática, uns avatares que criaram e que nada tinham a ver com cada um dos meus lindinhos.
     Se serviu para algo, a pandemia provou-me que ensinar não pode ser assim. Transmitir conhecimentos literários, por exemplo, sem o livro na mão, não é o mesmo.
     Sei que milhares de professores se juntaram para tentarem dizer ao mundo que estava tudo bem, que era tudo maravilhoso. Uma mentira. Ninguém estava preparado para isto, muitos professores a léguas de dominar as tecnologias, muitos alunos sem acesso a elas.
     A inverdade deste último período está por aí, sem marcas visíveis, por enquanto.
     Cada vez mais me assusta o que os governos querem fazer da escola pública: a formatação de jovens que se não souberem pensar, argumentar, criticar, decidir, melhor ainda. Quero voltar para a escola e lutar contra isto.

Ensaio pela ilha







     Lembrei-me que, um dia, gostaria de subir contigo aquela serra que reconhece, há anos, o som dos meus passos. Levar-te-ia desde a frondosidade das gigantescas árvores por caminhos secretos e íngremes... até à aridez dos penedos cinzentos, bem lá no cume.

   Mostrar-te-ia, então, esse curso de água digno e majestoso, que serpenteia quase a beijar o mar... e, bem no meio, na equidistância das margens sombrias, na sua singeleza natural, verias a verdadeira Ilha dos Amores.

    Porque, quando estou a um palmo do céu, o meu pensamento é veloz como um cervo... nas minhas veias corre a água desse rio... e o meu coração tem a forma simplíssima duma ilha perdida na Natureza.

                                          Gostaria... [para amainar a saudade.]

[lembrei-me agora, ao fim de quase dez anos, que já aconteceu]

Ensaio sobre a casa



De repente, alguém nos diz que não podemos sair da nossa casa. Não estamos presos, não há grades, no entanto, passamos a olhar para as paredes com uma certa desconfiança. 
Há muito tempo, tanto que nem me lembro, que não estava em casa tantas horas seguidas. Se consigo? Claro que consigo, afinal, anda por aí uma coroa desgovernada. Não quero dar-lhe essa possibilidade de me encontrar, não a conheço de lado nenhum, nem faço questão.