Ensaio pela palavra... [antes de o ser]




Cenário despido de adereços fúteis. Palco difusamente iluminado a verde esperança. No centro, imponente, um tronco de árvore. Duas personagens [sempre duas], uma em cada canto da boca de cena, olham o tronco, num silêncio respeitoso. Fim da didascália, de mais uma cena do absurdo.

UM - Talvez um dia haja forma de saber, porque o canto dos pássaros se pintou de ausência...

OUTRO - Talvez se possa descobrir onde se enraizaram todos os sonhos a haver.

[silêncio]

UM - Sentiremos, nesse dia, que o tempo não escorrerá pela ampulheta dos dedos solitários; que os dias amanhecerão, no eterno retorno de rasgos de felicidade; que a brisa suave apagará todas as marcas de memórias magoadas, dessa pele sedenta de vida.

OUTRO - Talvez o rio se embriague, no sorriso das folhas perenes... vigilante, no cântico doce de prazeres anelantes.  Talvez tenhamos de mergulhar de novo no desejo de ser.

UM - Aprenderemos, então, a desencarcerar todos os sentimentos cativos, pelos grilhões resistentes de quem não quis acreditar. Procuraremos a ara genuína, onde se resguarda a dádiva do amor. Seremos... um e outro, num futuro plural, num espelho inquebrável e natural, ramos férteis e frondosos de nós.

[silêncio]

OUTRO - Talvez falte algo...

UM [levanta-se, devagar, e dirige-se ao tronco que abraça, num sorriso] - "Talvez tenhamos de [nos] repetir à exaustão, pela vida fora,/ no oco dos troncos onde residem/ todas as cirandas de sol e pedra,/ antes de ser palavra".

Cai o pano.

[entre aspas, versos de Mel de Carvalho]