[Luís]
[Por vezes, a encenadora chega atrasada ao ensaio. Improvisa-se, apenas.]
Teatro vazio. Pano aberto. Palco numa intencional obscuridade. Cenário de um único adereço: uma rocha imensa, ao centro. Duas quase personagens. Uma de cada lado da rocha. Sem se olharem. Em momento algum da representação. Que se improvisem as falas, de uma peça quase absurda.
UM - Sinto que as palavras cavalgam distâncias, por planícies desérticas de mim, num galope sem freio.
OUTRO - "Numa intensa e tranquila galopada/ estanquei nos corvos do teu olhar/estranhei/ amansei."
UM - Sinto que as palavras anseiam quebrar os elos que as agrilhoam, no escuro do meu olhar... voar nas crinas de um poema por inventar.
Um e outro permanecem imóveis. Colados na rocha imensa que invade o palco.
OUTRO - "Num galopeio mais aperfeiçoado/ refreei no regozijo de te arrecadar..."
UM - Sinto que as palavras agasalham gritos perfeitos de silêncio, galgando penedos frios e irracionais, numa corrida sem volta.
Silêncio. Um tempo.
OUTRO - "Hoje, neste farto vale que tu és,/ pasço bucólicas ervas devolutas/viciado no doce feno das palavras."
UM - Sinto que as palavras se podiam alimentar do desejo, tatuado nos poros distantes da tua pele...
OUTRO - "...esvoaçando no silêncio dos ventos..."
UM - ... sinto que as palavras renunciam, cansadas...
Um e outro afastam-se da rocha. Olham o fundo da sala. Escura. Onde, no meio da plateia vazia, a encenadora assiste em silêncio.
UM - Saio de cena?
OUTRO - Saio de cena?
Encenadora - Apenas... e sem mais palavras!
[Por vezes, a encenadora chega atrasada ao ensaio, e a representação perde todo o sentido!]
[Com alguns versos de L Silva, entre aspas, de um poema que me foi dedicado, em 2009]