Uma nova temporada...

[Luís]

Suspendeu, com nó lasso, cada intervalo de si, no gancho resistente da memória. E, no silêncio de sombras do poscénio, preparou-se para mais uma representação.

Apeteceu-me [um breve ensaio]




O dia surgiu sem rasto de tristeza. No entanto, a chuva caía miudinha, irreverente na indecisão de molhar ou não molhar, de se fazer ouvir, ou nem por isso. E o céu, provavelmente cansado de um reinado de luz e calor dos últimos dias, fechara as portas cinzentas ao rei Sol.

Cenário mais-que-perfeito, em modo indicativo, para abrir o pano nesse palco de imensidão verde. A peça não teria metáforas gastas, nem hipérboles em forma de intervalo. Não se procurariam antíteses no dizer, nem sentires perifrásticos. Seria o real. Sem figuras poéticas.

Iniciámos a caminhada. Os brados do arroio, com pretensão a regato, rasgavam, alegremente, a descida íngreme do monte. No meio do matagal, começaram a surgir as primeiras construções de pedra. Chegáramos. Nem velas, nem pás, nem vento, nem Quixote... Moinhos de água. Apenas.


[Graça]


Pelo momento...

[Graça]

Sou pelo momento…

em que se inicia a subida da serra, na alegria frondosa de gigantescas árvores… em que se caminha, por trilhos árduos e quase secretos, calmamente até à penedia árida e cinzenta, que nos espera no cume…

Sou pelo momento…

em que se vê, lá em baixo, serpenteando com orgulho, esse curso de água quase a abraçar o mar… em que a paixão se desenha, na sua admirável natureza, verde e equidistante das margens… em que se agradece o azul pairando a um palmo do pensamento… em que se sente o sangue correr velozmente, em direcção à foz… em que se respira a própria Natureza… em que se imagina que a ilha é dos amores, e que o nosso coração está plantado no meio de um rio…

Sou por qualquer momento que, continuamente, me lembre de ti.

Pelo silêncio...


[Graça]



Sou pelo silêncio...

que abranda o calor dos dias... que se aquieta no ruído surdo do verdejante das árvores... que se propaga no regato de águas claras, rasgando trilhos serpenteados... que se abstém de palavras no remanso das rochas... que se cola na alegria calma das hortênsias... que se orna da dança de estrelas, no negrume do céu... que guarda as memórias decalcadas de te ser essencial... que apazigua a vontade de gritar o que não deve ser dito.

Sou pelo silêncio... que se emudece em mim.

Pelas horas...

[Graça]


Sou pelas horas...

que se despem do trinar monótono, na repetição dos dias... que tecem caminhos indeterminados, no vagar que não cansa... que se divertem no amalgamar de sóis e luas, sem poentes minguantes... que respiram o silêncio telúrico entre serras paradas... que rasgam ondas de sal no abrigo das enseadas... que alimentam o calor das mãos presas no brilho de um olhar... que sorriem na recusa da contagem.

Sou pelas horas... que se gastam em mim.

Ensaio sobre a partida...

[Graça]


Quando entrou no camarim, sentia-se vazia. Destituída de si. Era sempre assim, no final de mais uma temporada.

Sentou-se em frente ao espelho e começou a limpar a personagem. Lentamente. Cansada. A peça, que durante um ano representara, era um monólogo exigente. Fixou o olhar no reflexo da sua boca. Percebeu que as suas palavras tinham desertado, fatigadas de tanto serem ditas e reditas, sem o almejado retorno. Mas era peça de actriz única! Assumidamente, um solilóquio. Só o carinho do público a fizera estar todo aquele tempo em cena. E arrumou-o na saudade.

Esfregou energicamente os últimos vestígios da máscara que se apoderara da sua pessoa. Só então reparou na flor que alguém deixara sobre a mesa. A única que gostava. Levantou-se e espreitou o cartão. Sem assinatura. "O teu lugar é aqui!". Sorriu. Conhecia as palavras. Sabia o caminho. Pegou na flor, apagou as luzes, fechou a porta devagar... e partiu.


[Boas férias.]