Um ensaio feliz...

[Graça]


Tecem-se tramas de vida, em liços de alegria. O pente, na urgência do vaivém, desfaz os nós dos dias. E há um pedal, teimoso no seu laborar, urdindo peças felizes.

"Quero ser Professora!"

[Graça]


Desde que entrei no palco escolar, há quase duas décadas, que visto com alegria o papel de directora de turma. Gosto de pegar nos meus lindinhos, no início do terceiro ciclo, e acompanhá-los até ao final da sua escolaridade. Vê-los crescer, mudar a voz, assistir às suas primeiras lágrimas de amores não correspondidos, fomentar as suas certezas, partilhar as suas dúvidas, incentivar escolhas, são as 'deixas' diárias, nos anos que passamos nesta peça conjunta.

Há uns anos atrás, já num momento da vida em que tem de se começar a pensar no futuro, trabalhávamos, eu e a minha direcção de turma, as possíveis saídas profissionais. Foi um ano rico em encontros com vários profissionais de áreas diferentes, que os meus lindinhos foram conhecendo, no sentido de orientar os seus dias a haver. Sempre fui apologista de que se deve escolher a área de que se gosta, independentemente de tudo o resto. Gosto de pensar que, antes de mais, os meus lindinhos serão adultos felizes, realizados numa profissão que lhes encha a alma. Como eu!

Num determinado momento do ano, os meus alunos tinham de responder a um questionário, onde uma das perguntas era clara: o que se imaginava a fazer, dentro de dez anos. Uma das minhas lindinhas escreveu "Professora, quero ser professora."

Na altura, já tanto tinha mudado no sistema de ensino, já se tinha perdido o respeito por esta bela profissão. Não tentei demovê-la. Seria contra todos os meus princípios. Optei por lhe explicar como poderia ser o seu futuro, sem trabalho garantido, sem noção de dias da semana, porque todos iguais, sem reconhecimento pela dedicação extrema que leva muitas vezes a descurar a outra parte da nossa vida... mas a resposta foi sempre a mesma "Quero ser professora!". Os pais vieram assustados falar comigo, o que poderiam fazer para retirar ideia tão absurda da mente da sua filha. Tentámos, de novo, pintar o possível cenário de uma vida incerta. Não foi suficiente. E a minha menina seguiu o seu rumo. Perdi-lhe o rasto...

Hoje, passeava, com a minha companhia habitual, junto ao rio da minha cidade, saboreando, finalmente, a tarde de um sábado descansado, quando, de repente, ouvi alguém chamar-me: "Professora?!". Já não era a minha menina que tinha à frente... era uma jovem mulher, de olhos doces, como ainda recordava. Conversámos um pouco. O curso tirara... o estágio fizera, sim, tinha sido um dos anos mais felizes da sua vida... dar aulas de Português. "Sabe, Professora, também eu chamava 'lindinhos' aos meus alunos!..."- e sorriu. "E agora?", perguntei com algum receio. Trabalha ao balcão de uma loja de relógios... é vendedora, num centro comercial, da minha cidade. Sabe tudo sobre o tempo... esse, marcado pelos relógios de marcas caras. Continuou, sorrindo: "Só tenho saudade de algo... sabe o quê?". As palavras pareciam ter fugido da minha boca... abanei a cabeça. "De alguém a chamar-me Professora! Como é bonito..." Despedi-me, rapidamente. A minha lindinha lá seguiu, no meio de um sorriso, apressada... ia fazer o turno da noite.

Continuámos o nosso caminho, em silêncio, tanto silêncio! Às tantas, a pergunta: "Estás bem?"... olhei as águas calmas do rio, na certeza de que não seriam suficientes para lavar a minha mágoa. "Sim..." [o resto pensei... "também acho tão bonito que alguém me chame Professora!"]

Ensaio fugaz...

[Graça]


A rota era incerta. Perdida num trilho de esperança remota. As pedras, já roucas de tanto conter gestos esquecidos, escondiam o caminho. Aqui e ali, um esboço de flor lembrava o viço colorido de um outro sentir.
Era possível que a memória se apagasse... Mas uma árvore persistente guardaria, na fugacidade eterna, o desejo de se encontrar.

Um intervalo [sentido]...

[Luís]


Ingente era o silêncio que figurava no branco do papel. As personagens diluíram-se no vazio. O tempo desabou pelas escadas, fugindo do espaço, degrau a degrau. O narrador, cansado, partiu num barco à deriva, quebrando os remos à imaginação... E a história ficou por contar.

Ensaio pela representação...




A última semana, no palco escolar, abriu o pano às verdadeiras representações. Acabaram-se os ensaios que, durante meses, se vestiram dessa vontade inexplicável de subir ao palco, enfrentar a plateia e ser... outros que não eles... os nossos jovens actores.

A Sala Gil Vicente, habituada a esta azáfama, acompanhou, desde o início do ano, o brilho expectante nos olhos de quem recebe o seu papel... as birras de quem considera que a sua personagem está pouco tempo em cena... os risos nervosos de quem falha a deixa, vezes sem conta... a alegria de quem consegue, finalmente, memorizar o texto... e o orgulho de quem os vê chegar crisálidas envergonhadas e sabe que, no final, as asas coloridas de borboletas esvoaçarão, sem medo, pelo palco... os nossos jovens actores.

Iniciámos, segunda-feira, essa maratona teatral que atingirá, na sexta-feira, a ambicionada meta, cansada, mas feliz. Sete peças, em cinco dias. Representações de manhã, à tarde, à noite... mais de oitocentos espectadores. Na Sala Gil Vicente. A nossa. A do Teatro. O nosso.

Hoje, o foco dos projectores incidiu numa representação diferente. A sala estava cheia de um público jovem que largara a irreverência lá fora. A peça era especial e eles sabiam-no. Uma peça de actriz única... também ela especial. A nossa lindinha tem uns olhos claros e brilhantes. O sorriso nunca se apaga do seu rosto. Apelidada, por decreto do Ministério, como aluna com necessidades educativas especiais, a nossa menina frequenta a Escola num currículo diferente. Não será, de certo, doutora, nem engenheira, mas hoje foi actriz, como todos os outros. Subiu ao palco, com o seu Professor, e não se assustou com as mais de cem pessoas que a olhavam. Disse as suas falas... ao seu rítmo... articulou algumas palavras com dificuldade... movimentou-se no palco incentivada pelos gestos do Professor... mas nunca perdeu o sorriso! No final, aquele público aplaudiu entusiasticamente. Ela agradeceu. O pano fechou. Quando a sala ficou vazia, saiu por detrás do palco. Veio dar-me um beijo e perguntou, na sua fala atabalhoada, se estivera bem. Magnífica, respondi. E saí.

A Sala Gil Vicente ficou, sem dúvida, feliz, por ter sido, por uns momentos, Teatro... assim.

Ensaio pela chave...

[Graça]

Sempre se conhecera assim. Incrustada entre ombreiras sólidas. Era uma porta fechada, que nunca se abrira de verdade.

Maciça e robusta, ostentava uma fechadura inviolável... recusara a função primordial de ser mera passagem. A antítese da entrada e saída nunca lhe parecera fundamento de vida.

Tinha, ainda, da sua distante juventude, vestígios de verniz, já quebrado, já sem cor... o tempo deixara as marcas do seu indiferente transitar. E orgulhosamente resistira. Fechada.

Não quisera batente, nem postigo. Rejeitara sempre qualquer tentativa de casuais e efémeros visitantes. Gostava de se imaginar porta secreta de dias por descobrir.

Sempre se conhecera assim... aguardando, pacientemente, que alguém lhe encontrasse a chave.

Ensaio sobre o 13 de Junho de 1888...


"Tenho vontade de ver-te
Mas não sei como acertar.
Passeias onde não ando,
Andas sem eu te encontrar."
[FP]

Hoje, é dia de Santo António. Lisboa acordou com cheiro de sardinha assada, cansada de tanto marchar, na avenida da nossa liberdade. Para todos, é dia do santo que abençoa casamentos. Para alguns, é feriado. Para mim, é dia de Fernando Pessoa.

Ensaio sem título...

[Graça]

Aconteceu desabar um verso solto num só pensamento meu...

Apaguei-o, veementemente...

- antes que se tornasse poema em mim!

Ensaio pelo intervalo [real]...




Num intervalo real...
...vou regar o meu jardim!
[Graça]

Ensaio sem sentido...

[Luís]


A casa tinha sido roubada ao mar. Repousava, agora, nas dunas de uma praia, sustentada em paredes de sal. O silêncio, no interior vazio e taciturno, gritava ondas de incerteza. O rumorejar do vento aliciava as cortinas feitas de algas sofridas. Janelas derrotadas na cor da maresia.

Nessa tarde primeira, sobre a areia fina e quente, a casa respirara a saudade de tantos sonhos navegados.... os olhos secos clamaram o chão líquido que, ao fundo do areal deserto, se estendia, sedutoramente, em espuma de desejo.

A casa fora, sem saber, sem esperar, roubada ao mar. Naufragara na aridez da terra. Partiram-lhe a quilha do seu bolinar onírico. Rasgaram-lhe as velas de uma vida insuflada de ideais. Derrubaram-lhe o mastro que sustentava o porvir...

No entanto, sentia, nos alicerces da sua construção, uma perene crença... Seria, então, casa da praia, no cimo de uma duna. Em cada divisão, guardaria um sonho... em cada porta marchetaria um ideal... abriria as janelas a cada novo dia... viveria longe do seu amor, é certo, mas nunca, nunca seria um castelo de areia desfeito pela indiferença do mar.

Ensaio sobre as mãos [as outras]...

[Luís]


Terça-feira. Dia de ensaio, no palco real. A tarde estava quente, pintada nessas cores esbatidas pela força de um sol ofuscante. Entrámos rapidamente na Sala Gil Vicente. A obscuridade fresca recebeu-nos em sombras desenhadas nas paredes. No silêncio do auditório, quase podíamos sentir o nervoso que antecede uma representação. 

A estreia está marcada para daqui a duas semanas e o meu sempre alegre elenco preparou o palco para mais um ensaio.

A peça há muito que foi memorizada, as falas expressivamente interiorizadas, as marcações no palco nunca falham... iniciámos o ensaio, ao som de um tambor que se afasta. Durante os primeiros minutos, as personagens em cena mimam os gestos de bonecos que acordam para a vida. Almada Negreiros, com certeza. Depois, no nascer do espanto, cresce o diálogo... primeiro, num jeito tímido, para logo ganhar a força de quem tem tanto a dizer sobre o "Homem".

Ora bem, desde que iniciámos os nossos ensaios que a minha lindinha falha, invariavelmente, a mesma fala. Vestida dessa Boneca que tem o coração maior do que o peito, tropeça, todas as terças-feiras nas mãos... hoje, não foi diferente! Quase no final da peça, a personagem Boneca deveria dizer ao Boneco: "Dá-me a tua mão!... Que as tuas mãos não sejam as minhas... ". Na sua jovem inconsciência [?], a aluna aprendiz de representação repete, semana após semana, "... Que as tuas mãos sejam as minhas... ". Interrompi o ensaio. A minha lindinha lá foi dizendo que sabe a fala, mas que ela não sai... "É estranho, Professora... parece que a minha boca se recusa a dizer que as mãos dele não podem ser como as minhas... deveriam ser, não? Afinal, eles gostam, ou não, um do outro?".

Pedi-lhes que descessem do palco... sentámo-nos na plateia e conversámos sobre o significado da fala. Sobre a verdadeira mensagem da peça... sobre palavras... mãos... sobre o coração... 

A luz dos projectores já tinham espalhado o calor da tarde pela sala. Voltaram ao palco. Reiniciaram na fala da Boneca... e, suportada pela força do olhar, pelo poder das mãos entrelaçadas, a minha lindinha proferiu cada palavra coroada de sentimento: "Dá-me a tua mão!... Que as tuas mãos não sejam as minhas!... que sejam outras mãos como as minhas...". Ela sorriu... ele sorriu... e eu aplaudi.