(Luís)
O pano abria devagar. Pelo palco despido de adereços, projectava-se uma luz difusa em tons de vermelho. A plateia, em silêncio, aguardava o início do primeiro acto de uma peça por inventar. Duas personagens, vestidas de preto, entravam, uma de cada lado do palco... costas voltadas. Silêncio. Nada...
Da sala cheia, ressumava a expectativa. Duas personagens? Antecipava-se um diálogo... Saiu um monólogo! A duas vozes. As palavras emergiram rápidas, arremessadas pelo sentimento.
Primeira voz: "Abençoada seja a tua vida!"
Segunda voz: Há um eco distante que me aflora a mente...
Primeira voz: "Que uma chuva de lírios perfume de paz todos os teus caminhos!"
Segunda voz: Estas nuvens escuras obstruem o meu pensamento...
Sentia-se a inquietude do público, na incapacidade de perceber a coerência das falas. Imóveis, as personagens continuavam disparando palavras.
Primeira voz: "Que a água viva da verdade possa saciar a tua sede de conhecimento!"
Segunda voz: As memórias escapam-se-me por entre dedos de éter.
Primeira voz: "Que de ti se afastem as mágoas e os espinhos!"
Segunda voz: Calma! Calma! nada de emoções...
Nas cadeiras, o incómodo era palpável. Quase se ouvia, nos olhares interrogativos, a tentativa de associação ao teatro do absurdo... seria? Numa plateia pretensamente culta, não podia haver lugar a falha do género dramático.
Primeira voz: E que desperte em ti o sol oculto do saber.
Segunda voz: Não sei o que faço aqui!
O pano fechou lentamente. Na sala perdurou o silêncio. Ainda o silêncio. O mesmo que as duas personagens representaram... para lá das palavras.
[com alguns versos de Helena Magalhães, entre aspas, de um poema que me foi dedicado, em 1987]