No intervalo do ser [talvez]...

(Luís)


Talvez uma peça cativa de um louco vaguear...

cortina que desata o nó de um palco sonhado...

orquestra de sentires dessa partitura muda...

personagem transparente urdida em teia de fogo...

Talvez um enredo escrito em páginas do que pareço...

guião escondido na poeira dos bastidores...

Ensaio deserto de espírito vagabundo...

E nem eu me conheço.

[talvez!]

No intervalo [dos dias]...

(Luís)


dias que amanhecem com vontade de plantar ilhas desconhecidas,

arrancar asas às nuvens,

cortar grilhões à razão,

rasgar o horizonte, 

colar as mãos ao sorriso...

e descansar.


Ensaio pelo [verdadeiro] diálogo...

(Luís)

O pano abria devagar. Pelo palco despido de adereços, projectava-se uma luz difusa em tons de vermelho. A plateia, em silêncio, aguardava o início do primeiro acto de uma peça por inventar. Duas personagens, vestidas de preto, entravam, uma de cada lado do palco... costas voltadas. Silêncio. Nada...

Da sala cheia, ressumava a expectativa. Duas personagens? Antecipava-se um diálogo... Saiu um monólogo! A duas vozes. As palavras emergiram rápidas, arremessadas pelo sentimento.

Primeira voz: "Abençoada seja a tua vida!"
Segunda voz: Há um eco distante que me aflora a mente...
Primeira voz: "Que uma chuva de lírios perfume de paz todos os teus caminhos!"
Segunda voz: Estas nuvens escuras obstruem o meu pensamento...

Sentia-se a inquietude do público, na incapacidade de perceber a coerência das falas. Imóveis, as personagens continuavam disparando palavras.

Primeira voz: "Que a água viva da verdade possa saciar a tua sede de conhecimento!"
Segunda voz: As memórias escapam-se-me por entre dedos de éter.
Primeira voz: "Que de ti se afastem as mágoas e os espinhos!"
Segunda voz: Calma! Calma! nada de emoções...

Nas cadeiras, o incómodo era palpável. Quase se ouvia, nos olhares interrogativos, a tentativa de associação ao teatro do absurdo... seria? Numa plateia pretensamente culta, não podia haver lugar a falha do género dramático.

Primeira voz: E que desperte em ti o sol oculto do saber.
Segunda voz: Não sei o que faço aqui!

O pano fechou lentamente. Na sala perdurou o silêncio. Ainda o silêncio. O mesmo que as duas personagens representaram... para lá das palavras.


[com alguns versos de Helena Magalhães, entre aspas, de um poema que me foi dedicado, em 1987]

Ensaio pelo Desassossego...

(Graça)


Quando o pano se fecha, no final de uma peça, ainda ao som dos aplausos, um breve silêncio atravessa o palco. É o momento em que cada actor sente o vazio do despir da personagem, como se as palavras tivessem fugido. Esgotadas por tanto sentimento pronunciado.

Todos os dias, fecho o pano do meu palco e vivo esse momento na expectativa de que seja breve. Mas se, por acaso, as minhas palavras resistem em voltar, procuro-as, desassossegadamente... nas palavras de outros.

"Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados como a um gato, a tudo quanto poderia ser dito." (Bernardo Soares)

E encontro-as... sempre [como hoje].

Ensaio com tempo...

(foto de André Sousa)


Há uma força que se arrasta, lavrando as planícies do tempo. Rasgam-se sulcos em solo árido, na pressa errante de domesticar os instantes. O arado, numa azáfama consentida, arrasa o momento. Escraviza-se a vontade à sementeira das horas. 

Há uma força que se entrega aos grilhões do tempo. Aferrolham-se os sentimentos, em ampulhetas-masmorras. O carrasco, numa desassossegada consciência, guilhotina os ponteiros. Sentencia-se o desejo à prisão dos minutos.

Há uma força que não se revolta, assimilando o vazio da ditadura do tempo.
 
Bastava descobrir a flor indomável do deserto, cortar as grades ansiosas da janela, gritar panfletos irreverentes de liberdade.

Bastava ser o rasto lento de quem quer, somente, viver... com tempo.

Ensaio pelo encantamento...

(foto de Sérgio)

No lar da minha infância, não há "sussurro de tílias"... antes permanecem sinfonias, giradas vezes sem conta, no vinil matinal, que me acordava aos domingos. Domingo era o dia do meu pai. Ausente da passagem das horas, ao longo da semana, enchia a casa dos seus gostos musicais, assim que o dia abria os olhos. Aprendi a gostar de música clássica com o meu pai. Recordo essas manhãs, em que saltava da minha cama e, rapidamente, me lançava na dele, já Tchaikovsky ressumava de todas as paredes do quarto. A minha mãe gritava da cozinha "Baixa o som... olha os vizinhos!"... e o meu pai, indiferente aos protestos, pedia a minha atenção para a "Abertura 1812", a sua preferida: "Ouve, agora!". E eu ouvia... num silêncio devoto, que me permitia estar perto do meu pai, mesmo que o compositor romântico persistisse em fazer-nos companhia.

Depois, quantas vezes, após o almoço, partíamos para a visita à minha tia, no coração de Alfama. Aí, a música era outra. Nas escadinhas do bairro antigo, perto do 'chafariz de dentro', juntavam-se os amigos, cantava-se o fado vadio... e o meu pai incentivava-me. "Canta, filha, aquele fado que o pai te ensinou «Sou companheira do vento...»"... e eu cantava, enrouquecendo de propósito o timbre infantil da minha voz, só para o ver sorrir, sentindo-me uma autêntica rajada de vento... desse vento que soprava nos domingos da minha vida de criança. Fui, nessa feliz infância, a companheira do meu pai, nesse vendaval de sons tão díspares, que guardo, até hoje, na minha memória. [e nem vou falar de ópera, a mais marcante!]

Domingo... Cheguei há pouco do Coliseu. Fui ao Ballet. Cinderela, de Prokofiev. E, enquanto a gata borralheira, em pontas de sotaque russo, bailava a sua vida, em busca do príncipe vestido de "viveram felizes para sempre", inevitavelmente lembrei o meu pai... que nunca me contou histórias de encantar, "coisas de mulheres", dizia... mas que, sem saber, me abriu as portas a outros encantamentos da vida.

Um não ensaio [apenas]

(foto de Luís)

Por vezes, a encenadora amarrota o enredo dos dias. As cenas oscilam no pêndulo do improviso. Os actores-tipo figuram em esquissos inacabados. O ponto morde as deixas no silêncio... A peça exala o cansaço. E o palco mascara-se de estrado.

Por vezes, não há ensaio... apenas!

No intervalo [da razão]

(foto de Luís)

Há um trilho de chamas, num mar de serenos sentires.
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É rasto de quilha fogosa... vestígio de velas rubras... indício de um navegar ardente.
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É o desejo de amarar à deriva, rasgando o sal da razão.