Ensaio oferecido II...


Admiro nos poetas essa essência límpida e única... essa aptidão inerente de olhar o âmago do ser... essa torrente de sentires eternizados pela palavra.

Hoje, no palco escolar, era dia de poesia. Momento em que cada um dos meus lindinhos enfrenta a frieza branca do papel, e, na concentração solene perante a dificuldade do registo, faz nascer o poema. De repente, no silêncio que ressumava sentimentos, a pergunta: "A Professora já escreveu algum poema?" Os olhos levantaram-se, curiosos, na expectativa da resposta. Representei, num papel interrogativo: "E porque não perguntar se já escrevi um romance, uma novela, um conto, uma tragédia, uma comédia, uma crónica, uma reportagem...?" Saíram as várias tipologias textuais... sorriram, nesse entendimento de que não obteriam uma resposta.

Admiro nos poetas essa facilidade de criar sentidos figurativos... essa ambiguidade, aparentemente fácil, de jogar com a semântica. Admiro...

Não escrevo poesia. No entanto, muito de vez em quando, sinto uma vontade imensa e inexplicável de arrumar palavras ao sabor do sentir. E ofereço! Como este... feito numa das exposições de pintura da minha amiga T. R. Naquele dia longínquo, ao entrar, como que à minha espera, num dos cantos da galeria, um quadro. Vi-o - todo em palavras! Assim...


Peregrina da realidade,
Algo me chama do outro lado.
Perpasso o muro frio da ausência das palavras
Na esperança do grito que me aguarda.


Para trás...
os meus olhos vermelhos-sangue de sofrimento,
os meus pés ardentes agrilhoados na falsa liberdade,
o meu corpo diluído na cor que não quero,
o meu pensamento círculo-diáfano
na existência que não desejo.


O meu ser onírico espera-me,
atrai-me,
murmura-me o devir.

No Princípio era o Silêncio do real,
que abandono em busca do que sonho.
Do outro lado serei Eu!


Talvez os meus alunos lhe chamassem poema. Não eu! Porque admiro poetas!

Ensaio oferecido...

(foto de GMV)


Procuro a força nesta imensidão telúrica!

Oiço as vozes que ecoam no silêncio que persiste, na brisa que baila entre o verde murmurante.
Na vastidão da terra solto o Outro que em mim se guarda...

- É o monte! – grito.
É o monte. Sinestesia do espírito: não é o monte, sou eu!

Ensaio pela esperança...

(foto de GMV)

A erva crescera, desmesuradamente, por entre as pedras do caminho. Numa revolta espontânea, silenciosa, nunca quebrada por passos determinados.

As giestas haviam tombado das bermas, numa liberdade nunca aparada, escondendo o traçado daquele trilho abandonado.

Ao fundo, imponente nas pedras marcadas de memórias, uma casa por visitar. A porta fechada, a que ninguém quis bater, ressumava, pelos veios outrora castanhos, anseios de companhia.

Só as hortênsias, teimosamente, se renovavam na esperança de uma véspera de nada.

Um dia, talvez um dia, o devaneio se matize... um dia, quem sabe um dia, possa calcar cada pedra dessa estrada sinuosa, bater nessa porta de carvalho antigo e dizer somente: cheguei!

Ensaio revisitado...

(foto de Tinta)


O ensaio de hoje, neste singelo palco da minha existência, resulta de um triste olhar sobre o mundo... sobre as pessoas que nos rodeiam... sobre as palavras ditas... e também as não ditas.

Um mundo que se apresenta, cada vez mais, repleto de personagens tipo, actores dissimulados, que se querem estrelas frondosas, em estreias eternas, de salas cheias, com aplausos de pé.

O nosso mundo "dramático", porque teatralizado, está carregado desses semi-actores, que se iludem no verde das folhas perenes, na beleza caduca, como diriam os meus alunos. Na vivência insconsciente de que um dia a folha cai. O que restará então?

A nudez dos troncos que somos. Verdadeiramente feios, porque despidos de ornatos falsos. Naturalmente retorcidos, porque preenchidos de memórias. Essencialmente sólidos, porque o depositário da nossa existência.

A verdadeira nudez é a claridade que ofuscará o palco, que projectará laivos de arco-íris no cenário negro, que gritará a sua "deixa" de sabedoria.

Deve ser por isso que "as árvores morrem de pé".

Talvez, um dia, antes de fechar o pano, no final desta minha peça, me possam ver como a árvore que sou, sem a frondosidade das folhas, com os meus ramos retorcidos e sinceramente despida.

Ensaio pequeno...

(foto de Tinta)

Quando o vento me traz odores tacteados pelo sabor do verde, conscientemente, minto-me:


- Não tenho saudades!

Ensaio sobre lembranças....


Na mais simples acepção, na mais pura relação de sinonímia, "merecimento" é ser digno de algo.

E há dias que mais não são do que o granjear dessa dignidade.

Ontem, o dia foi de cansaço para o meu telemóvel. Habituado ao silêncio que o dever lhe impõe, foi guardando, no seu mutismo, mensagens não lidas, chamadas não atendidas. Carinhosamente, velou pelas palavras que aqueceriam o meu fim de dia. A reportagem saíra. O meu "palco" circulava por este país...

A aula de Língua Portuguesa começara há pouco, já a tarde ia a meio, quando um sorriso assomou à minha porta. O jornal foi-me entregue, por entre a brincadeira feita ardina. Agradeci. Os meus lindinhos rapidamente perceberam. "Leia S'tora!". Li. E a cada nome referenciado, o brilho multiplicava-se no olhar. E a cada palavra relembrada, o calor perpassava no sorriso.

Há dias assim... em que as palavras surgem de todo o lado, para compor cenas de uma peça maior!
No frio da noite, inesperadamente, como dardos, surgiram mais palavras projectadas neste Teatrices: "valores", "criatividade", "reconhecimento", "carinho". Representações do que sou? Alguém que muito admiro e respeito, no seu esculpir irreverente de sentires poéticos, JCD, achou que sim e dardejou o meu palco.

Ontem, o dia apresentou-se cinzento e frio. Não o meu! Obrigada pelas lembranças.

Ensaio sobre o esquecimento...

(foto de Tinta)




Por vezes, receio não ter experimentado,


por puro esquecimento,


uma qualquer emoção.

Ensaio diferente...


Hoje, era o primeiro ensaio, após as férias. Sabia que os meus "aprendizes do fingir" enfrentariam o ar gélido da manhã, com a avidez natural de quem, por fim, pode segurar as folhas mágicas de uma peça escrita propositadamente para eles. Eu sabia. Eles é que nem imaginavam que o ensaio se apresentaria diferente.

Na véspera, fora contactada por uma jornalista. Alguém que gostaria de conhecer o meu Clube de Teatro e, se possível, falar com os meus jovens actores.

Recebi a senhora na Sala Gil Vicente. Primeiro comentário de espanto: "Mas isto é mesmo uma sala de teatro!" Sorri. O palco existe, sim... a plateia lá está, vazia é certo, mas ainda ressumando o calor de tantas vezes repleta... o pano abre, no orgulho da sua cor vermelha, já cansado de mais de dez anos de aberturas, umas envergonhadas, outras ansiosas, e todas, todas vestidas de alegria. O espaço de tantas representações!

A conversa prévia, comigo, fluiu ao sabor de uma torrente de perguntas... as memórias inscritas naquele espaço avivaram-se... em segundos, revivi os momentos inesquecíveis de centenas e centenas de alunos que já subiram àquele palco... tantas vezes, arrancando gargalhadas de uma plateia sempre desconfiada... provocando a lágrima envergonhada... ou, simplesmente, merecendo o estrondo de um aplauso sentido. Lembrei os meus queridos colegas... outros encenadores do mesmo espaço, de outros jovens... senti-lhes a dedicação, a igualdade neste amor, tão nosso, pela arte da representação.

No meio desta conversa, começaram a entrar os meus "lindinhos". Primeiro, com o acanhamento de quem não conhece; depois, rapidamente, assumindo o papel de entrevistados, com o mesmo à-vontade com que encaram o palco verdadeiro. A jornalista fazia perguntas e espantava-se com as respostas. Não esperava a seriedade com que se falava de teatro, a maturidade assumida ao explicar os sentimentos vivenciados, antes de uma representação...as certezas de quem reconhece que, pisar um palco, modifica a vida. Limitei-me a ouvir. Orgulhosamente, ouvi os meus "aprendizes" falar desta experiência única, que partilham comigo.

Já nas despedidas, à porta, um deles perguntou à jornalista: "Isto vai mesmo ser publicado?".

A pergunta aqueceu o meu dia. Mesmo que não saísse no jornal, o ensaio tinha valido a pena. Entre as paredes da Sala Gil Vicente, repartiram, com uma estranha, os seus sentires teatrais, sem fingimento.

A jornalista riu. "Na próxima edição."

Ensaio sobre palavras...

(foto de Tinta)

A minha vida são palavras!

Dito, desta forma ligeira, parece ridículo. No entanto, a mais pura verdade. Faço das palavras dos outros o meu viver. Trabalho com elas, tentando ensiná-las e, mais do que isso, levar alguém, um único que seja, a gostar de saboreá-las... como eu. Árdua tarefa esta, quando, cada vez mais, as palavras surgem truncadas, se estrangeirizam sem piedade, se disfarçam de sentidos que não reclamaram.

São belas as palavras. Admiro quem com elas funda uma relação de amor infindável... e as pronuncia com paixão. Quem as procura nos recônditos cantos desta casa da língua, quem as reorganiza em efeitos pictóricos, quem as cria numa renovação constante.

Na insistência de ser Professora, foco o meu sentir num horizonte de palavras...dos outros. Os "fazedores" virtuais da arte de dizer. São palavras que se admiram, em exclamações metafóricas...são paradoxos de sinestesia...são notas soltas de melodias hiperbólicas...são perfeitas assimetrias de sentimento...são telas escritas em tons de arco-íris...são ânsias profetizadas...belezas traduzidas...são a Alma que se eleva numa semântica intemporal.

Enraízo-me neste chão de vogais e consoantes conotadas. Fluem a toda a hora, quebrando o silêncio que sou. Brotam no turbilhão de uma nuvem que se afasta. O Sol irrompe... e as palavras ficam.

Lido com as palavras dos outros no insistir quotidiano. Só as minhas não sei dizer!

Ensaio primeiro...

(foto de GMV)

Podia, hipoteticamente, escrever o primeiro ensaio do ano. Podia, por breves instantes, despir a personagem que sou, e rabiscar consciências antecipadas desse tempo que há-de vir. Podia invocar Jano, num acto de pretensão clássica, explicar-lhe o sentido das suas duas cabeças. Explicitar o seu papel junto da Porta que se abre para o desconhecido... e de igual forma encerra o que se viveu. Podia, no almejar do tempo renovado, desenhar projectos a haver. Podia pronunciar votos direccionados de mais isto e mais aquilo. Podia escrever o primeiro ensaio do ano.

Contudo, sinto rouco o meu pensar. Cansados os meus vocábulos. Inertes as minhas mãos.

Podia... mas vislumbra-se ingente, essa ponte de mim!

"Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... Sim, talvez só depois de amanhã..." [Álvaro de Campos]