Último ensaio...

[Luís]


Esperou, calmamente, que o público abandonasse a plateia. Na sala vazia, desligou, um a um, os cansados projectores. E sentou-se no meio do palco, abraçada pela escuridão. Fora a última representação de uma peça difícil de pôr em cena. A sua.

Nunca fora dada a despedidas. Pronunciar um "adeus" sempre lhe soara a renúncia, a desistência... palavras que há muito retirara do seu vocabulário. No entanto, sabia que o tempo não perdoa, incansável na sua voragem de passar... só por passar.

Era, então, tempo de terminar. Não faria analepses sobre os ensaios plenos de sentires, nem guardaria memória dos intervalos que lhe aligeiraram a alma. Muito menos deixaria vogar no seu pensamento, em prolepses desnecessárias, pedidos ritmados pelas dozes badaladas, ou desejos embebidos em champanhe. Concluiria, apenas.

Levantou-se e, no centro do palco, lembrou a "deixa" repetida à exaustão: ano novo, vida nova. Sorriu, por contrariar a sabedoria popular... não queria uma nova vida! Amava a sua. Quanto ao ano novo, seria, unicamente, mais um ano... Na escada da sua existência, 365 degraus a subir. Sem receio de tropeçar... Avançaria com a certeza de que, sempre que fosse imprescindível, representaria esse papel, que conhecia de cor, de resistente corrimão.

Fechou o pano e saiu.

[... que o vosso ano seja tudo o que desejarem...]

Intervalo [pela verdade da poesia]

[Luís]



"Sobre um sonho desfeito erguer a torre
Doutro sonho mais alto, e, se esse morrer,
Mais outro, e outro ainda, toda a vida!"

[Florbela Espanca]

Ensaio repetido [como o Natal...]

[Graça]

Há dias em que me apetece rasgar, letra a letra, as palavras que não escrevi. E os pensamentos?... perdê-los, feitos pó, num canto dos meus bastidores. Há dias em que se sente o aproximar de outros dias a que me apetece faltar...

No entanto, o sentir não muda... ficam, por isso, as palavras que têm um ano, mas que se mantêm iguais. Representar é também repetição...

Não há como fugir do Natal! Mesmo que se queira. Ainda que se evoquem tristezas, que se critiquem gastos, que se relembrem misérias, não há como evitar-se.
O Natal chega de mansinho, com o mês de Dezembro. Anuncia-se nas iluminações que invadem as ruas das cidades. Passeia colorido em cuidadosos embrulhos, ao som dos passos apressados. Arruma-se em montras com árvores cónicas. Espalha-se a branco sintético nos vidros transparentes. O Natal veste-se de vermelho anafado com barbas de algodão. Pendura-se artisticamente nas janelas que nunca se abrem. Articula-se na boca de toda a gente, acompanhado desse adjectivo Feliz, tantas vezes com entoação de antónimo.
Mesmo que alguém tente resistir, o Natal entranha-se na existência. Adocica-se em massa de sonhos, orgulhosamente empilhados em balcões de pastelaria. Chama-se Rei no bolo. Disfarça-se de bacalhau cozido, ou modernamente fingido por entre natas. O Natal reclama os holofotes do último mês do ano.
Mesmo que alguém não queira, é absorvido pelo espírito em crescendo, que termina nessa noite recheada de família... Uma noite que se exige alegre. Sem piedade dos lugares que, à mesa, foram vagando. Vidas ceifadas na seara da nossa vida.

É quase Natal. E só por isso escrevo estas palavras. Porque, mesmo que eu não queira, o Natal ressoa na minha mente. Não me deixa fugir.

Então, que FELIZ seja a minha e a VOSSA existência.

Quanto ao Natal... não há como fugir! Seja.

Ensaio pelo voo...

[Luís]


Anda cansado o meu palco. O pano oferece resistência à abertura dos escassos ensaios. A encenadora tem os dias gastos à nascença. Noutro palco, o escolar.

Desde o início de Novembro que, eu e os meus alunos, andamos a voar, por esse mundo infinito de sentidos que é o texto poético. Esvoaçamos por entre as palavras, desfazendo ambiguidades, apreciando usos figurativos, procurando associações, aclarando vivências. Eles gostam... eu fomento!

Nas últimas aulas, levei comigo uma parte da plateia deste Teatrices. Todos poetas que eu admiro. A Lídia, o Joaquim, a Isabel, a Branca, o Vieira Calado, o Nilson, a Paola. A primeira proposta foi simples. Ouviram os poemas, lidos por mim, e depois, a pares, tinham de escolher um dos nove, que tinham à sua frente. O objectivo inicial era pô-los a argumentar, com o colega, a sua escolha. No final, teriam de ter um único poema para defender e apresentar, oralmente, aos restantes colegas. As discussões começaram... um gostava mais deste poema, porque estranho... o outro preferia aquele, porque mais acessível. Argumentar nem sempre é fácil, no entanto, os meus lindinhos lá conseguiram chegar a consensos.

Seguiu-se a apresentação, à turma, da escolha de cada par. E foi uma delícia ver os meus meninos defender o "seu" poema, como se de um tesouro se tratasse. Aduziram argumentos, todos válidos, para quem desconhecia tudo sobre o poeta, para quem só tinha um poema como referência... falaram de gostos, de assuntos, de sentimentos, de aspectos formais, das palavras... tantas palavras. Ficou-me na memória a conclusão de dois dos meus alunos, no final da sua exposição... que, provavelmente, a interpretação que deram ao poema, não teria nada a ver com a verdadeira intenção do poeta, mas isso que importa. O que é a verdade, num poema? - perguntava a minha lindinha. E o seu colega rematou, dizendo que o poema pertencia a quem lê, portanto, era correcta a análise que fizeram. E eu sorri...

Os Poetas, que levei deste meu palco, foram as asas que permitiram aos meus alunos o voo pelo discurso argumentativo.

O trabalho continuará, poema a poema, numa análise mais cuidada, porque, no meu palco escolar, o pano nunca se fecha à representação das belas palavras.

Ensaio roubado [ao Poeta]...

[Luís]


"Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectáculo que posso." [Fernando Pessoa]

... porque há dias em que só um Poeta me entende.

Ensaio narrado [no silêncio]...

[Luís]


Sempre gostara do silêncio. Respeitava-o incondicionalmente. Ouvi-lo era, tantas vezes, o apaziguar do seu preenchido mundo de palavras. Gostava do silêncio após a tempestade, quando a Natureza, depois de chorada a ausência e gritado o vazio, repunha a sua energia, na quietude do verde murmurante. Gostava do silêncio inquietador da cidade, quando o calar da noite abarcava as estrelas num dormir apressado. Gostava, essencialmente, do silêncio da casa, que gotejava ainda sussurros de emoções e se reflectia, ao amanhecer, no abraço daquele olhar esverdeado.
Sempre gostara de silêncios, mas nunca compreendera o silêncio de uma não-resposta. Por isso, naquele dia, decidira embrulhar todas as perguntas ignoradas, todas as palavras falhadas, as mensagens não entendidas, o canal destruído, o referente descontextualizado, o emissor solitário, o receptor inerte. Envolveu toda a falta de comunicação, num papel pardo de certeza. Chegou determinada ao cais edificado pela razão. Lançou o pesado embrulho no primeiro barco errante que encontrou. Ancorada na tristeza, viu-o partir. Silenciosamente. E desfez o cansaço na espuma sonora das areias.

Ensaio repetido [pela saudade...]

[Graça]

Lembrei-me que, um dia, gostaria de subir contigo aquela serra que reconhece, há anos, o som dos meus passos. Levar-te-ia desde a frondosidade das gigantescas árvores por caminhos secretos e íngremes... até à aridez dos penedos cinzentos, bem lá no cume.

Mostrar-te-ia, então, esse curso de água digno e majestoso, que serpenteia quase a beijar o mar... e, bem no meio, na equidistância das margens sombrias, na sua singeleza natural, verias a verdadeira Ilha dos Amores.

Porque, quando estou a um palmo do céu, o meu pensamento é veloz como um cervo... nas minhas veias corre a água desse rio... e o meu coração tem a forma simplíssima duma ilha perdida na Natureza.

Gostaria... [para amainar a saudade.]

Despi-me [no "foyer"]...

[Graça]

Neste palco de mim, a cada subida de pano, nasce um ensaio que me revela, gera-se um intervalo que espelha o meu sentir. No entanto, hoje, decidi não passar do foyer. Não entrei no Teatrices, escondi a encenadora, despi-me de figurações da linguagem e resolvi ser "eu".

Fui desafiada pela Lídia a falar um pouco de mim, em cinco revelações, já o tinha sido pelo Henrique... então, antes que comece a parecer incorrecta, [e apesar de não ter o hábito de responder a estes desafios], resolvi ser o mais objectiva [e egocêntrica] possível. Deixo um pouco de mim... sem representações.

EU JÁ TIVE... vontade de fechar este "palco". A escrita sempre foi para mim uma necessidade, uma forma simples de aclarar as minhas ideias, de arrumar os meus pensamentos, de olhar os meus sentires. Mas há momentos na minha vida em que a necessidade não surge. Aí olho para o meu Teatrices, sinto-o vazio, abandonado... e escrevo, só por isso. Para preencher o espaço.

EU NUNCA... me arrependi de, num dia longínquo da década de oitenta, contra a vontade de todos os que amo, ter decidido ser Professora. Adoro a essência da minha profissão, apesar das turbulências que a assolam, à vontade dos sucessivos governos.

EU SEI... que quero aprender algo novo a cada dia. Numa palavra, num gesto, num sorriso, num olhar... Gosto de aprender, tanto como de ensinar.

EU QUERO... continuar a ser feliz, cada dia, todos os dias.

EU SONHO... pouco, muito pouco! Aliás, as minhas insónias pouco me deixam dormir, reduziram os meus sonhos a quase nada. Mas, se o sonho é um desejo de futuro, então eu sonho acabar os meus dias, respirando o verde do meu saudoso e distante Minho, olhando a assimetria dos montes que rodeiam a minha casa, sentindo o céu estrelado como um elmo de existência, ouvindo o rio a correr, no fundo do vale...
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Brevemente, levantar-se-á o pano, para um novo ensaio. Boa semana para todos os que me lêem.

Ensaio incompleto [e simples...]

[Luís]


Há palavras que não quero escrever.

Porque, ironicamente, espelham o texto que sou. Porque inferem o meu pensar. Porque sintacticamente moldam o meu sentir.

Nesta noite silenciosa, pintada da cor que gosto, molhada pela chuva que me encanta, há palavras que me fogem... e eu só penso que não me apetece correr.

Amanhã, talvez as procure... e as guarde dentro de mim. Mas não as escreverei.

Intervalo [por uma flor...]

[Luís]


Rasgaria, num flutuar onírico, um trilho que anulasse todas as distâncias.

Enfrentaria, num sereno caminhar, brisas de sentires interditos,

e apagaria, nessa estrada de esperança, as sucessivas curvas de esperas.

Mas chegaria!

Renasceria, um dia, à beira de um Poeta. Seria flor, apenas, matizada pela cor da paixão.


Ensaio por um bolo...


[Luís]

No palco da minha infância, todos os dias sete de Novembro havia festa, na casa da minha Avó.

Tudo começava na noite anterior, quando a minha Deusa [tinha nome divino, a minha Avó: Artemiza.] me ia dar o seu beijo de boa-noite. Eu dormia sempre lá. Era, nesse momento, que o discurso fluía com a serenidade que lhe era essência, por meio do sorriso mais verdadeiro que conheci. Que, no dia seguinte, teria muito que fazer, que talvez nem estivesse em casa, que eu ficaria com o meu Avô... enfim, eu calava a resposta, por conhecer, há tanto, a verdade dessa renovada mentira.

Na manhã do dia sete, eu acordava, invariavelmente, com o cheiro de um bolo acabado de sair do forno. A minha Avó era uma excelente cozinheira. Todos os anos me preparava um bolo diferente, feito com o carinho e a tradição do seu saudoso Alentejo. Depois, chegava, para mim, o melhor momento do dia. Na cozinha, sentada num banquinho de madeira, que o meu Avô em tempos me fizera, eu esperava que a minha Avó se sentasse perto de mim, para comermos a fatia do bolo, acompanhada do inseparável café com leite.

Não era o bolo que me alegrava o dia, aliás, nunca tive coragem de lhe dizer que nunca gostei de doces... era a minha Avó. E as suas histórias dessa terra onde uma moura, Salúquia, se apaixonara perdidamente... Nesses momentos, a sua voz ressumava a cor das searas de trigo, ondeando nas planícies alentejanas, o cantar dos sobreiros, a frescura das ribeiras, que corriam em direcção ao Mondego. Incrível contadora de histórias, a minha Avó oferecia-me o raiar de uma manhã de aniversário, sempre diferente... tal como o bolo.

Há muito que a minha querida Deusa subiu ao Olimpo... Provavelmente, continua a encantar com as suas narrativas de sotaque cantado. E todos os dias sete de Novembro, ao acordar, sinto, na minha memória, o cheiro de um bolo divino acabado de sair do forno.

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[Obrigada]

Ensaio pouco teatral...

[Luís]


A peça recusaria as falas. Seria apenas a árdua tarefa de exprimir pelos gestos o turbilhão da alma. Quanto ao cenário, ganharia forma no espírito da atenta plateia. Duas personagens, sem distinção de principal ou secundária, representariam a trama. Um homem, um barco. Que subisse o pano!

Olhou o mar, espelho sereno, gravando beijos de espuma, na sorridente praia. Zéfiro, companheiro de tantas viagens, dançava junto ao barco, convidando-o a entrar. Resistia! Fora navegador de todas as águas... marcara, em cada onda desse corpo de água, quilhas de esperança. E já nem se lembrava, porque perdera o norte, porque arrumara as velas cansadas. Olhou o barco. Um barco pronto a partir, ao sabor do destino, no bolinar do querer, sulcando vagas de sorte.

Entrou. Partiria de novo, sim. Amarrou, então, no mastro da vontade, o que restava do seu coração. Insuflou as velas com o vendaval do desejo. Cortou as amarras do cais onde vivera dias cinzentos. Recolheu a âncora do desânimo. Estava, finalmente, preparado para zarpar, em busca dessa ilha desconhecida...

No centro do palco, sob a luz quente de um foco branco, o actor despiria, finalmente, o traje de navegador. Assumiria, na pele nua, a sua condição de Poeta. Cruzaria oceanos de palavras, enfrentando tempestades metafóricas; beberia o sal dos líricos sentimentos, amainando os rebeldes versos; e aportaria, sem medo, nessa ilha feita poema... O mesmo poema que o barco, tranquilamente, traria para mim.

Uma peça só possível de encenar, num palco chamado Teatrices!


Um agradecimento...

[Luís]


Podia evocar as ondas onde os deuses flutuam e tingir, com as cores do poente, um barco de esperança.

Podia abarcar os sons da floresta, grafados, no calar de um segredo, em folhas frágeis e tão perenes.

Podia homenagear a mão criadora e universal, plena de promessas nunca quebradas.

Posso... tão-somente, enraizar o agradecimento num sorriso sentido.



[Obrigada, querido Henrique]



Ensaio por um dia...

[Graça]

Existem dias, no meu sereno "palco", que mais parecem versos escandidos, em métrica infinita. O meu dia, que agora termina, foi, sem dúvida, um poema.

A manhã trouxe os meus lindinhos ávidos da continuação dessa narrativa, quase lírica, que é "O Conto da Ilha Desconhecida", de Saramago. Tínhamos iniciado a leitura na aula anterior... o texto é difícil. A professora facilita: lê para eles. A cada paragem, soltavam-se as perguntas, na intenção de descobrir o que se esconde "por detrás das palavras". Simbólico, o conto. Parámos numa das frases, "Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar". Partimos, então, para o desbravar do pensamento. E lá foram saindo as primeiras tentativas de definir o "gostar", de aclarar a "posse". As ideias, defendidas acerrimamente pelos meus jovens, vestiram-se de estrofe de rima solta.

Ao fim de noventa minutos de Língua Portuguesa, passámos para o Estudo Acompanhado. E o poema ganhou forma. Literalmente. Produção escrita de um texto colectivo. Um poema. Gostam desta actividade, que vai nascendo, palavra a palavra, com a colaboração de todos, no ainda quadro negro. Desta vez, propus que escrevessem um texto poético, a partir de um verso de Eugénio de Andrade. "Dai-me outro Verão nem que seja" - escrevi no quadro. O silêncio, que surgiu, antecipava a dificuldade da aula, mas rapidamente se embrenharam na tarefa e lá íamos registando pequenos pedaços poéticos, que em nada envergonhariam o original... Depois de muita discussão, de muito escrever e apagar, decidiram que o texto falaria das quatro estações, num campo semântico negativo, até chegar à Primavera, última estrofe de esperança. Registo, unicamente, o início de cada estrofe-estação: "Dai-me outro Verão nem que seja/o traço de um amargo perfume"; "Dai-me esse Outono incerto/ainda que mar de constantes penas"; "Dai-me outro Inverno nem que seja/o veneno de uma promessa quebrada"; "Não! Dai-me antes a Primavera/onde quero voltar a entrar". Talvez, noutro ensaio, caiba todo o poema.

O meu dia continuou pleno de sentimento lírico, no cair da tarde, ao ler as palavras simples que alguém me deixara: "Na placidez dos dias, o meu olhar demora-se em ti, feliz como uma véspera!".

Chegou a noite. Lisboa. Coliseu. La Traviata. Já por aqui partilhei o quanto gosto de ópera, desta em particular... o meu dia terminou com essa história cantada de um amor impossível. Abandonei, por momentos, o "palco" habitual, refugiei-me, finalmente, na plateia e deixei que a música de Verdi fosse poesia para os meus ouvidos.

Bom fim de semana!

Ensaio rápido...

[Graça]


Marchetou o pensamento no verde agreste da paisagem. Esmoreceu um sorriso na afeição magoada das pedras.

Calou o olhar, no eco ingente dos passos feitos estacas. Mordeu o desejo insensato de perfazer a distância de uma ponte. Atou os braços na promessa de um abraço vazio. Lacerou cada palavra não-dita, no envergonhado curso de água.

E partiu.

Improviso [um ensaio apenas]

[Graça]

De volta ao palco. Cenário reduzido a nada. Luzes – só a claridade breve de um fim de tarde, que rompia pelas frestas das janelas. Silêncio na sala. Ensaio apenas.

Boca de cena. Duas quase personagens, olhando o vazio, lado a lado. Fim da didascália. As falas…

UM – Como se dirá a despedida?

[sem gestos, sem movimento]

OUTRO – Com um “adeus”, talvez…

[sem um único movimento]

UM – Sem mais palavras?

OUTRO – Mais palavras só adiariam o momento…

[silêncio prolongado]

UM – Guardaremos as memórias que ainda dançam nas paredes?

OUTRO – O melhor é deixá-las ir nos escombros…

UM – Conseguiremos recomeçar?

OUTRO – O fim é sempre início de algo…

[cada vez menos luz na sala]

UM – Sentiremos saudade?

[silêncio, nenhum gesto, nenhum movimento]

OUTRO – Lembrança grata de alguém ou de alguma coisa de que nos vemos privados…

UM – Sentiremos saudade?

OUTRO – Um palco, uma plateia, uma peça, uma representação…

UM – Sentiremos saudade?

OUTRO – Talvez, não sei... sim, acho, sempre que ouvir a palavra “teatro”… ou sempre que não a ouvir…

UM [saindo] – Adeus…

OUTRO [imóvel] – Talvez haja tempo para mais um ensaio.

Ensaio sobre o silêncio [imposto]...

[Luís]


Acordou cansada... não subiria ao palco, nesse dia! Sentia-se arrasada, por tanta representação sem retorno. Procurou, então, no guarda-roupa, as vestes com que habitualmente se disfarçava: doce, poderosa, grave, sensual, incisiva, meiga...

Nenhuma se adequava ao seu estado matinal. Apassivou-se. Fatigada da contínua acção do articular palavras ao vento. Refugiou-se nos bastidores. Reconhecia a importância do seu papel, sabia o quanto era fundamental, nessa peça de entendimento, que implica dar e receber, do primeiro ao último acto. No entanto, gastara-se! Antes do ponto culminante da comunicação. Unicamente.

Acordou cansada... guardaria, por algum tempo, na recusa dos ensaios, intensidades, alturas, inflexões, ressonâncias. Matizado de sentimentos?

Seria apenas voz, a preto e branco... na certeza da afonia.

Ensaio sobre o 'sujeito'...

[Graça]


Mais do que ensinar poesia, gosto de pensar que ensino cada um dos meus alunos a olhar para além das aparências... a aceitar a imaginação como água livre do pensamento, na recusa de barragens sociais preconceituosas... a sentir a palavra como concha que resguarda emoções, ideais, desejos, sentimentos, revoltas, dúvidas... vida. Mais do que ensinar poesia, gosto de pensar que ensino os meus alunos a amar os poetas, a amar a sua língua.

A poesia nunca apareceu nas minhas aulas como conteúdo amordaçado por programas desfasados da realidade, nem se vestiu unicamente de aspectos teóricos sobre noções de versificação. Não se limitou a representar o papel formal que explica o que é o verso, a estrofe, que recorre à rima perfeita-imperfeita, rica-pobre, cruzada ou interpolada no estilo aprisionado do sentir... Ao longo dos anos que permanecem comigo, os meus lindinhos habituam-se a conviver com a poesia, como se fosse uma linha paralela de todos os conteúdos e temas abordados em aula. Assim, nesse caminhar lado a lado, tentamos esbater essas auréolas negativas que se cristalizaram no estudo do texto poético.

No entanto, não abdico de alguns preceitos... há palavras que sabem não poder utilizar para falar do poema ["interessante", "giro", "bom"]; há termos correctos para falar do texto [um "verso" não é uma "estrofe", uma "estrofe" não é sempre uma "quadra"]; e há um "sujeito poético" que se expressa no texto [não confundir com o autor].

Ora bem, há dias, numa aula, um dos meus lindinhos, quando corrigido, porque não devia dizer "Ruy Belo, neste poema, quer...", perguntou: "Ó Professora, mas afinal os Poetas não sentem nada? É sempre esse 'sujeito poético'?". Momentaneamente, apeteceu-me rir. Também eu considero que é difícil abstrair o poema de quem o escreveu, e das suas próprias vivências. Mas parece que os poetas preferem ser vistos como "fingidores". Não estraguemos, então, a ilusão do poeta... falemos de um "sujeito" abstracto, e admiremos tão-somente a sua arte de amar as palavras. O próprio Pessoa escreveu um dia: "O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. Nada disto tem que ver com a sinceridade.[...] O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero do mundo." [Sabendo quem é Caeiro... estará a dúvida clarificada?]


Um intervalo [que persiste]

[Luís]



Ainda que a noite cale o soar dos adiados passos,

e morosamente o luzidio sentimento se canse de indicar o caminho,

não resvalará, na solidão negra da calçada, a crença numa alegre chegada.



Ensaio pictórico...

[pintura de Lili Laranjo]


Era a hora de adormecer a reminiscência de um reflexo poente... soprar o desejo no murmúrio inquietante das águas... vogar no matizado céu da saudade.

Era a hora de despir a tua espera, numa margem de areias solitárias... gravar o cansaço da distância, em cada ramo dessa frágil árvore.

Era a hora de secar o sal de um nostálgico olhar... e pintar, a tons de esperança, a chegada de um novo dia.

Ensaio pelo Outono...

[Luís]


Há palavras que, inocentemente, reclamam conotações. Figuram-se de significados plurais, num aparente receio de assumir o sentido primeiro. Outono. Sem outras roupagens, a estação que precede ao Inverno... ou que sucede ao Verão.

Nasci no Outono. Não sei bem se por isso, mas é a minha estação preferida. Gosto do Outono. De sentir o arrefecer dos dias, de reconhecer a beleza dos troncos, só visível com a queda das folhas. Gosto das nuvens que se desenham no céu, poder olhá-lo no mistério da sua imensidão, sem a luz ofuscante do sol. E, nos dias em que a chuva cai, timidamente miudinha, silenciosa, percebo a importância do meu Outono, no regenerar da vida.

No entanto, há palavras que parecem temer não derivar noutras, mesmo que impropriamente. Cedem, então, sem revoltas aparentes, à vontade da plurissignificação, mesmo que os elos pareçam fracos, ainda que a relação seja forçada. Veste-se o Outono de decadência, de velhice, de tristeza, de anúncio do fim. Diz-se que não é tempo de paixões... e eu nunca percebi muito bem, porque se associa o amor ao Verão... como se o sentimento tivesse existência pré-definida e delimitada; como se, no andamento da vida, feito de um compasso quaternário, só se pudesse amar a um tempo!

Gosto do Outono. Como gosto das outras estações... antíteses, é certo, no ciclo da vida. Mas seria a vida tão bela, se uma eterna anáfora de Verão?

Gosto do Outono. Dito assim também, pelo Poeta:
"Seria Outono aquele dia,
nesse jardim, doce e tranquilo...?
Seria Outono...
Mas havia
todo o teu corpo a desmenti-lo." [David Mourão-Ferreira]

Perdi-me no emaranhar de palavras... Efectivamente, só queria receber o Outono, com a alegria desse equinócio boreal, que mostra o dia igual à noite, porque, na vida, não devia haver espaço, nem tempo, para superioridades.

Ensaio pelo 'cavaleiro do conjuntivo'...

[Graça]


O pano subiu, para o início de mais uma temporada. A plateia surgiu vestida, ainda, pelos tons dourados dos raios quentes do Verão. O meu público. Os meus alunos. Traziam, no sorriso da saudade, o desejo de contar viagens, marcadas pelo carinho da companhia; de falar dos sonhos crescentes na proximidade do concluir de mais um ciclo de vida; de subir, na irreverente adolescência, ao palco e ser o próprio na personagem inventada. Chegou o tempo das aulas.

Começámos por falar de livros... esses que supostamente os deviam ter acompanhado nos dias de nada. Agradaram-me as respostas. A maioria leu mais do que um. Claro que outros só leram, provavelmente, as legendas dos filmes, no passar das tardes em frente à tela imensa, no centro comercial mais próximo. Poucos, pelas respostas.

Gosto de ler para os meus lindinhos. E a pergunta surgiu naturalmente: "Professora, não vai ler nada para nós, hoje?" Tirei um livro da mala. Sabia que o momento seria pedido. Os Cavaleiros do Conjuntivo. Comecei pela exploração do próprio título. Vagueámos, ao sabor das intervenções, até à Idade Média... imaginaram cavaleiros nobres, em busca do graal perdido... senhores feudais em grandes caçadas... histórias infantis, guardadas na memória, de cavalos e dragões, de donzelas em altas torres. Contive o riso. Continuei as perguntas. E o "conjuntivo"? Saiu, erradamente e de rajada, o "tempo" verbal... corrigido, pela voz mais atenta, para "modo" e explicada a sua expressão de sentido hipotético... o mundo do provável, do desejável... da dúvida, da espera, da esperança... e então? cavaleiros da esperança?... A conversa continuou animada, com hipóteses lançadas à discussão e defendidas com as certezas de quem tem 15 anos!

Sorri mais ainda, se possível... O livro é, unicamente, a prova de que a "língua" não é um corpo inerte, cansado dos abusos de actos de comunicação perdidos... antes um esqueleto firme, que possibilita os movimentos da vida!

Numa aula assim, o tempo voa... não iniciei a leitura da narrativa. Preferi lançar, para a reflexão colectiva, a pergunta que o inicia, destacada, numa imensa folha branca, numa letra muito miudinha: "Que seríamos nós sem a ajuda do que não existe?".

Colaram o brilho dos seus olhares em mim. Senti-lhes a dúvida de que eu pudesse, talvez, ter lido mal... A pergunta que esperava: "Professora, importa-se de repetir?". Escolhi um dos meus lindinhos, e repeti a pergunta... A resposta saiu, sem sinal de amarras, ou confusões: "Nada! O que não existe ainda é o que nos faz ser..." Os outros encararam o colega, sem terem percebido bem o raciocínio. Pedi-lhe que clarificasse. E o meu pretenso filósofo acrescentou: "Ó Professora, eu sou como um cavaleiro do conjuntivo... tenho esperança de um dia ser alguém... só aí, o que não existe passará a existir... outro eu!"

Tocou. Saíram a discutir o assunto. E eu fiquei com a certeza de que alguns, quando o pano cair, lá para Junho, no final desta peça de mais um ciclo escolar, terão o esqueleto pronto para suportar os movimentos, sempre incógnitos, da vida.