Ensaio já velho




No primeiro dia do ano, reuniram-se, em consílio, as palavras. Cansadas da anarquia reinante, na casa da língua, exigiam ser ouvidas. Reclamavam por uma deliberação justa, que impedisse que fossem truncadas, aleatoriamente, na sua essência morfológica, ou substituídas por estrangeirismos petulantes. Queriam, ainda, que as não disfarçassem, de forma sistemática, de sentidos que nunca pediram...


Tentou-se uma certa ordem na assembleia. Deu-se, assim, palavra à primeira palavra. Falou, com voz serena, em nome de todas as palavras gastas. Essas que se proferem, vezes sem conta, sem que se pense no gosto de saboreá-las. Essas que, de tanto serem ditas sem sentimento, perdem a cor do significado. Gastas pelo abuso único de quererem fazer delas meras muletas linguísticas. Pediam unicamente a denotação primeira. Aplauso na reunião. "Que não se gastem as palavras!", perpassava no auditório.

Fizeram-se ouvir outras palavras... interditas, populares, insurgentes, esquecidas, amadas, odiadas, vivas, vazias, correntes, cuidadas...

Quase no final do encontro, levantou-se uma palavra diferente. Permanecera calada, no meio dos acalorados discursos. O murmurar que, entretanto, se instaurou, ressumava a admiração de todas as outras. Conheciam-na por resistente. Disse:

Que a deliberação seja uma, apenas. São belas todas as palavras. Procuremos, então, quem com elas estabeleça uma relação de amor ingente, quem as pronuncie com paixão, quem as procure nos recônditos cantos desta casa da língua, quem as reorganize em efeitos conotativos, quem as crie em renovação constante... quem as saiba usar no quebrar do silêncio.

E nada mais havendo a tratar, deu-se por encerrada a reunião.

No início de um novo ano, que as palavras regressem, em arestas aladas de esperança, para a voz de quem as ama.