Ensaio por um Natal...


[Luís]

[republicação]

Cenário despido de adereços. Foco de luz difusa, em tons de vermelho-sangue. Duas personagens [sempre duas], vestidas de preto, sentadas no meio do palco. Costas com costas. Silêncio absoluto. Fim da didascália. Início absurdo de uma peça por inventar.

UM - Dizem que o Natal chegará, quando uma estrela solidária ecoar distante, no cume de uma árida montanha.

OUTRO - Dizem que sim! que chegará inquieto num braço de insónia, aniquilando todas as falsidades.

UM - Dizem que, nesse dia, os rios alucinados semearão enchentes de paz em margens distraídas.

OUTRO - E que o sol parará o tempo, recusando o renascer de todas as solidões.

UM - E que as mãos dos homens se transformarão em garras de afectos.

OUTRO - Dizem que o Natal chegará, quando as árvores se enraizarem em terrenos arados de verdade.

Silêncio. Apaga-se o foco. Ouvem-se apenas as vozes, no palco escuro.

UM - E dizem quanto faltará para esse dia?

OUTRO - Tanto!... que faltará sempre tanto!

Fim de cena.

[Bom Natal, para quem passa neste palco.]

Ensaio por um sorriso...



Naquele dia, solitária em cima de um palco noturno, a encenadora esperava que alguém lhe colasse um sorriso na sua face.
Fitava o pó espalhado pelo chão vazio, cravado de tantas memórias felizes... Ao fundo, alguns adereços esquecidos pareciam gritar as tantas gargalhadas outrora divididas com a vida.
Centralizou o seu olhar no pano de cena. Gasto, velho, cansado das imensas aberturas aplaudidas com genuíno sentimento. Um sorriso. Faltava-lhe um sorriso. Um sorriso que, como diria Saramago, não tivesse a definição pobre e fria de um dicionário. Um sorriso que apagasse todas as mágoas, que varresse as dúvidas, que clarificasse todas as incertezas.
Um sorriso verdadeiro... daqueles que aquecem o sabor dos dias no calor de um olhar. "Não custa nada..." - ouvira algures - "... colocar um sorriso no dia de alguém."
Não custa nada! No entanto, naquele dia, no centro de um palco apagado, gélido de ausências, nada faria sorrir a encenadora. Sentia a peça raiada a falsidade. E as personagens? Tipo, personagens-tipo de uma sociedade massificada pela mentira.
Queria a verdade, unicamente a verdade que a faria, de novo, sorrir.
"Não custa nada!"

Ensaio para empatar...


O meu palco anda perdido... no eterno adiar da vontade. Preencho, então, o vazio com outras palavras, também minhas, mas longe, muito longe de qualquer palco.


Chegarei...

Sei de um lugar longínquo
Onde os dias renascem,
Dissipando a espuma das noites
No rebentar do sonho.

Sobre os trilhos sinuosos da floresta,
Dançam silfos desenhados no ar.
Cingem regatos bem-aventurados,
Num desejo veemente
Que antecipa o eterno reencontro.

Cruzarei o fogo encantado,
Chama viva de sentimentos por escrever…
Devorarei todas as cinzas da teimosa Fénix,
Para que as palavras se renovem
À minha chegada.

Irei!

Espera-me, no lugar de sempre!
Onde a poesia nos protegerá
Do esquecimento dos deuses. 

Ensaio pelo vazio...

[Luís]


trago os dedos cansados de me escrever
no silêncio das folhas brancas
vazias
tão vazias

houve tempos em que acreditei
ingenuamente
que o delírio com que desenhava cada letra
me libertaria esta alma agrilhoada

e escrevia-me
como se cada palavra
fixasse no papel sentimentos permanentes
como se cada frase ortografasse raivas
e desejos
sorrisos
e lamentos
como se cada verso
coerentemente dissesse a minha vida

houve tempos em que a tinta
foi lastro de fúria incontrolável
foi mel derramado sílaba a sílaba
foi matiz de felicidade
foi desilusão líquida em cristais salgados

trago os dedos cansados de me escrever
no silêncio das folhas brancas
vazias

tão vazias
de mim

Ensaio sem imagem...

Vesti-me nas sombras
de um palco gasto,
rouco de tantas deixas perdidas.
Há muito que as luzes
se diluiram no cântico
grosso de todas as chuvas.
Há muito que o pano
confirmou a inutilidade
de um poema envenenado.
Estendi-me no pó sagrado
que queimava o sal líquido das recordações...
Um eco
entre as cadeiras vazias.
Um coração breve
no silêncio
das vozes.
Pensei-me no sentido
dos ponteiros do relógio.
Devagar, entrei na realidade
E cansei-me,
cansei-me
de tanto esperar
as palavras.

Ensaio pouco dramático [porque quase poético]




Falemos dos caminhos
Monótonos
Sulcos gastos na indiferença dos dias

No cruzar dos gestos vazios
Resguardemos o sorriso que nos basta
E nas ruas sujas de pedras frias
Nas portas anónimas e sempre fechadas
Incrustemos uma vontade aderente de ser

Brademos no silêncio da multidão confusa
A espera de campos cultivados de esperança
São ternas as searas que não plantámos
São ávidas as palavras de que não falámos

Não fujamos, então, da memória
Abracemos o leito que nos aguarda
E recomecemos
Sem medo
Sem vergonha
Sem hipocrisias…
A tecer os filamentos aguerridos
Que sarem todas as feridas.

Ensaio ainda distante...


Nada é novo... ensaia-se, apenas, a renovação.