Ensaio pelo 'lindo'...

Diz o dicionário que 'lindo' é um adjectivo de origem controversa. No entanto, não é a falta de clareza na origem da palavra que me incomoda. Nos últimos tempos, houve palavras que se esvaziaram de sentido na minha vida... talvez por vê-las usadas e abusadas em qualquer tipo de contexto, sem que lhes sentisse o verdadeiro sabor semântico. Tudo passou a ser 'lindo', 'linda', 'lindíssima', 'lindérrima'...
Ora, uma tarde destas, a palavra voltou a encantar-me...
Há uns meses largos, já durante os ensaios com os meus aprendizes da arte de dramatização, bateu-nos à porta, de uma sala de palco fingido, um miúdo de olhos límpidos. Com voz um pouco atrapalhada, disse apenas 'Vim para o Teatro!'. Perguntei-lhe quem o enviara e, ao ouvir o nome da minha colega do ensino especial, compreendi que tinha ali um jovem com características muito próprias. Recebemo-lo no grupo, reformulei a peça, para que tivesse uma personagem para representar. O D. vivia com uma alegria imensa cada dia de ensaio. Informei-me da sua problemática, bastante complicada, e, num dia em que o meu pequeno aprendiz foi a uma consulta de acompanhamento, conversei seriamente com os outros elementos do grupo. Compreenderam toda a situação e prepararam-se para qualquer eventualidade, no dia da apresentação da peça, para a comunidade local.
Os meses foram passando, o D. modificando a sua medicação... uns dias muito eufórico, fazendo o seu papel direitinho, outros dias sentado no chão da sala, sem sequer dar conta de que era a sua deixa para entrar em cena. Por vezes, encontrava-me no espaço de recreio da Escola, agarrava-se, então, ao meu pescoço, perguntando, quase ao infinito, ' Quando vamos representar??'... outras vezes, passava por mim, com um olhar perdido, e nem me via.
Uma destas tardes, aconteceu o dia tão esperado. Sala cheia... mais de quinhentas pessoas, para assistir à nossa peça. Tínhamos marcado encontro nos camarins, uma hora antes do início do espectáculo. Todos chegaram a horas e foram perguntando, ansiosos, pelo D. O meu menino chegou, pouco depois, já vestido para o seu papel e com um sorriso de orelha a orelha... os outros sorriram também. Aproximou-se a hora de iniciarmos a representação da peça que escrevi para eles "Um novo princípio"... atrás do palco, sentido o calor da plateia, aguardavam todos em silêncio, na escuridão de um dos lados do palco imenso. Do outro lado, ficou o D., junto comigo. No meio da escuridão, sentia a sua agitação. Dei-lhe a mão e pedi-lhe que ficasse quietinho, até entrar em cena. O pano abriu, ao som dos primeiros aplausos, e a peça começou. Ali, naquele lado do palco, escondidos pelo pano de cena, eu e o meu pequeno actor assistíamos ao desenrolar da peça... estava tudo a correr muito bem. Uns minutos antes de entrar em palco, o D. segurou mais forte a minha mão e disse baixinho, olhando para os seus companheiros que representavam: 'Professora, é tão lindo o teatro!'. Ouviu a sua deixa e entrou seguro em cena: "Ouvi o Batuque... o que foi que aconteceu?". Os outros respiraram de alívio e a peça continuou, já com o meu menino em palco. Sozinha, no escuro dos bastidores, apeteceu-me chorar... o meu menino tinha-me devolvido, sem saber, todo o verdadeiro significado de uma palavra que julgara perdida. 'Lindo.'

Ensaio por um tempo [que me foi roubado]...

[Luís]



Há uma força que se arrasta, lavrando as planícies do tempo. Rasgam-se sulcos em solo árido, na pressa errante de domesticar os instantes. O arado, numa azáfama consentida, arrasa o momento. Escraviza-se a vontade à sementeira das horas.


Há uma força que se entrega aos grilhões do tempo. Aferrolham-se os sentimentos, em ampulhetas-masmorras. O carrasco, numa desassossegada consciência, guilhotina os ponteiros. Sentencia-se o desejo à prisão dos minutos.


Há uma força que não se revolta, assimilando o vazio da ditadura de todos os tempos.


Bastava descobrir a flor indomável do deserto, cortar as grades da ansiosa janela, gritar planfletos irreverentes de liberdade.


Bastava ser o rasto lento de quem quer, somente, viver... com tempo.



[reeditado, porque hoje faz ainda mais sentido...]

Ensaio por um 'imenso' detalhe...





Há dias em que o palco abre o pano a todas as emoções... e a encenadora, sentada numa plateia de sorrisos sentidos, aplaude, apenas, com um coração cheio de palavras.


Hoje, foi um desses dias. O calor que se fazia sentir, na minha adorada cidade, antecipava uma tarde quente, na partilha de todos os afectos.


Ali, bem no centro do Campo Grande, a Maria João Martins apresentaria o seu livro de poesia, "Do outro lado do espelho". Há muito tempo que, num silêncio de admiração, a leio, no seu blogue 'Pequenos Detalhes'. Nunca quis deixar um comentário, um sinal da minha passagem, porque, tantas vezes, o que fica por dizer é o mais importante. Disse-lho hoje, num abraço sentido, cúmplice, de quem ama as palavras e respeita todos os que as sabem dizer... escrevendo-as, oferecendo-as, como numa dádiva límpida.


A sessão vestiu-se de uma simplicidade plena de sentires, palco onde só os 'grandes' se tornam 'inteiros', como tão bem souberam dizer a [querida] Mel e a Otília, ao apresentarem o livro.


Há dias em que o palco é maior, quando se representam, tão-somente, momentos de vida. "Tenho flores plantadas à minha espera", assim termina o poema da Maria João, que li durante a apresentação... um imenso detalhe, num jardim de poemas, hoje mais florido, porque regado a amizade.


[Que seja o primeiro de muitos, querida Maria João.]

Ensaio inventado...

[Luís]




Um dia, oferecer-lhe-ia um cais de esperas... onde cada chegada fosse genuína, e não máscara sedutora de um 'adeus' premeditado.


[bom fim de semana]