Ensaio por uma mão [numa cena do absurdo...]

[Luís]


Cenário quase vazio. Palco numa sentida obscuridade. No centro, uma cama imensa, com lençóis vermelho-sangue. Aos pés da cama, na boca de cena, duas quase personagens [sempre duas], sentadas no chão. Costas com costas. Em silêncio, cada um olha para um telefone que segura nas mãos. Ele e Ela, cabisbaixos... personagens de mais uma cena absurda de uma peça por inventar. Fim da didascália [ou talvez não]... Ela marca um número, coloca o telefone no ouvido e espera. Ele olha, demoradamente, o seu telefone, enquanto toca. Atende.

ELE - Alô...

ELA - Pulsam-me as palavras num delta de incertezas.

ELE - Insistes em contrariar-me. Quero a vida desfragmentada... debruçada numa janela de esperas.

ELA - O silêncio desliza nas tuas mãos gélidas de pátina... estendo-te a minha.

ELE - Odeio, quando as palavras me espiam.

ELA - Que ninguém conheça as que te sopro, na ilusão de um vazio linguístico... [sempre e se for para sempre? memória. tribunal. impressão. liga-me, por favor! operacional. fundação. mudança. buçaco. letras. acaso. arma. anarquia. saramago. dois. ou três. filhos. submersos. divórcio. brasil. mentira. vem! não venhas! fixo. livros. tantos. esquerda. solidão. sou de telhas! silêncios. medo. revolta. ordem. tomar. choro. sonhos. não é nada disso! templários. avô. loucura. neve. cabana. primavera. inspiração. mesmo que penses o contrário! saldo. acidente. revisão. bela... íssima... íssima...]

ELE - Céus! É o vento que ouço.

ELA - De que cor são esses olhos que teimas em esconder?

ELE - Tu sabes! Azuis...

ELA - Verdes, cor de relva-esperança onde os dias assumem o beijo da terra?

ELE (baixo) - Azuis...

ELA - Castanhos, cor de tronco-perene onde se enraizam todos os sentires?

ELE (cada vez mais baixo) - Azuis...

ELA - Estranha cor de céu-inalcançável.

Ele levanta-se e lança o telefone para o meio da cama vazia, sempre de costas para Ela.

ELA - Estendo-te a minha mão, cheia, apenas, de gestos comuns.

ELE (saindo de cena) - Vou fumar um cigarro.

ELA (permanecendo sentada no chão, olha o telefone, que segura entre as mãos) - Ligar-te para quê? Nunca atenderias!


Cai o pano.

24 comentários:

Graça disse...

"In the meantime let us try and converse calmly, since we are incapable of keeping silent."
Samuel Beckett

Gosto do género - Teatro do Absurdo - no palco... [na vida?]

Obrigada a todos os que passam por aqui. Bem hajam.

Lídia Borges disse...

Que lindo!...
Teatro do Absurdo(?!) Quem diria?

Bem-vinda Graça.

Um beijo

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida

Quase nos sentimos no cenário...quase entramos na personagem.
Adoro teatro...tenho um filho que é encenador e já encenou o Fim de Partida de Samuel Beckett...um escritor por vezes difícil...mas a tua descrição foi linda.

Deixo um beijinho carinhoso
Sonhadora

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

ensaio ou talvez não.

gostei do dialogo, quase monologo, gostei do cenário, bem elaborado.

e senti-me um pouco ela, e o fecho dele:

"vou fumar um cigarro." (tremendamente real)

e o dela

"nunca atenderias"
(estupidamente real)

até doi, ler.

parabéns Graçinha

bom fim de semana

beij

Marta Vinhais disse...

Em nada absurdo...
Porque são gestos e ditos comuns...
muitas vezes dolorosos....Ficam palavras por dizerem, sentimentos sem explicação....
Uma beleza...
Obrigada pela visita
Beijos e abraços
Marta

Canto da Boca disse...

Graça, que coisa inexplicável senti lendo esse texto e ouvindo essa música! A primeira explosão foi o choro, verti lágrimas absurdas, vai ver por conta das emoções à flor da pele; vai por conta do texto que rasgou minhas entranhas e doeu!
Vivi um momento tremendamente masoquista, porque quis a dor de enveredar por cenas tão re-conhecidas (reconheci-me)!
Absurdo, inverossímil, fantástico? Não saberia classificar sua narrativa, mas entendi-a tão fantasticamente pós-moderna! Caberia um "teatro pós-dramático" (revi muito de Dogville - Lars Von Trier - nesse textaço!!)?
Como Bertolt Brecht, devo colocar um aviso: "atenção, não se emocione, isso é ficção"?! Mas com conteúdo dramático escandalosamente real!
Ma-ra-vi-lho-so!

Um beijo grande, querida e um ótimo final de semana!

EXPEDITO GONÇALVES DIAS disse...

"Não os quero azuis e insistes. Quero-os seus para mim. Apenas. Cansei-me de céus e de ilusões..."
Adorei o texto.
Graça, deixo-te um lindo fim de semana!
Abraços!

Everson Russo disse...

E vamos vivendo cenas da vida,,,de tudo que nos rodeia...um grande beijo de bom final de semana pra ti querida amiga...

A.S. disse...

Querida Graça,
O teu talento já não me surpreende. Curiosamente ia citar Samuel Beckett, (que eu adoro) pois os estilos são muito semelhantes.
Apenas te digo que me vi perante uma cena (ou uma viagem?) onde a paisagem arde nos olhos que a contemplam.


O meu beijo, Graça!
AL

AFRICA EM POESIA disse...

GRAÇA
Saudades
que bom estar contigo sentir o teu carinho



O selo .é o meu presente...


C omeço por dar os parabéns
E é lindo chegar a estes números
M uitos anónimos passaram na África em Poesia

M uitos amigos vieram dar um beijo
I limitada a minha felicidade
L inda esta ligação bem forte...

V im a medo para a blogosfera
I maginava que não ia ficar
S em grandes ambições vim e adorei
I mediatamente chegaram amigos
T antos e tão bons que agradeço...
A braço-vos neste momento
N ão deixaremos de brindar com champanhe
T eremos o saboroso bolo de chocolate
E é graças a Vós que guardo no coração 100.000
S erei sempre vossa amiga-Gosto muito de cada
um de vós!...ao vitor um beijo especial


LILI LARANJO

Mel de Carvalho disse...

"Estendo-te a minha mão, cheia, apenas, de gestos comuns."

E não são, Gracinha, os gestos comuns aqueles que melhor nos tomam, por genuínos?

Um repto. Levar à boca de cena estes textos: Em papel!!! Ficaria tão orgulhosa, creia. E iria estar lá, seguramente, a aplaudi-la de pé!!!

Beijo e Santa Páscoa
Mel

Zininha disse...

Uau...que belo espaço para o ensaio diário da vida...
fiz um passeio encatador pelo seu blog...
apaixonante...

Um dia lindo pra você!!!

lupuscanissignatus disse...

da pulsação

da

in/
comunicabilidade



*beijo*

Cristina Fernandes disse...

Um ensaio belíssimo de vozes que se entrelaçam nos tempos de cena... a cor do céu funde-se no olhar, e será uma só voz? - o final, fez-me lembrar uma peça recente que vi do Cocteau - A Voz Humana.
Beijos
Chris

AC disse...

O cenário é convincente, "enche os olhos do público". Contudo, ele e ela, sempre de costas voltadas. Absurdo? Nem um pouco, basta olhar em volta. Somos cada vez mais e nunca estivemos tão longe uns dos outros.
Um excelente momento, Graça!

Beijo :)

vieira calado disse...

Olá, amiga, como está?

Hoje passei simplesmente para lhe desejar

BOA PÁSCOA!

Bjjss

Paulo disse...

Estes teus 'ensaios do absurdo' trazem-me sempre à memória os nossos tempos de Faculdade. Já tinhas marcada no olhar, no sorriso, esta tua relação com as palavras. Saudades, minha querida.
A cena está magnífica, de tão real!

Beijo em ti.

PJB

Boa Páscoa :)

Maria Azenha disse...

O teatro do (Ab)surdo que diz muito mais do que se imagina...
Gosto muito, Amiga.


Beijinho ,

maria

Branca disse...

Querida Graça,

A cena pode ser do absurdo, mas há tantos absurdos desses na vida real, por isso o deixaste entre parentesis, porque no fundo a mão estendida que se oferece nem sempre é bem aceite, mesmo por quem precisa dela...e do outro lado o silêncio, o desencontro, a solidão.

O post seguinte não precisa de comentários, entendo porque o deixaste assim, sei bem quanto esse paraíso fala por si e a ti diz-te mais que a ninguém. Realmente aí "...todas as palavras são desnecessárias" e nem preciso desejar-te uma boa Páscoa, porque se há Deus Ele existe em cada canto dessa terra e a cada momento ressuscita nela.
Dias felizes, férias felizes.
Branca

Mar Arável disse...

Repito

Colo o meu ao teu cigarro

ateio-me

Bjs

. intemporal . disse...

.

.

. e por.que há dias que se rare.fazem no silêncio da admiração .

.

. antes do cair do pano .

.

. e talvez no sublime alcance do paraíso .

.

. deixo.te um beijo . o teu .

.

. e o desejo in.equívoco de uma santa páscoa .

.

. en.volta entre.os.carinhos da vida humana .

.

. teu amigo .

.

. paulo .

.

.

Sofá Amarelo disse...

... e o pano cai para... subir de novo alguns instantes depois porque o espaço não é mais que o tempo que se repete...

muitos beijinhos e Boa Páscoa, querida Amiga!!! >:o)))

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

venho desejar uma santa páscoa

beij

Sopro Vida Sem Margens disse...

Ah! Que aroma a arte...!

Quero ficar...