Ensaio sobre um palco real...

[Vila Nova de Milfontes]


Por vezes, a encenadora abandonava o palco de todas as representações e seguia, num trilho premeditado, em demanda da verdade. Cansada de encantamentos repetidos à exaustão, de palavras artifícios-literários ditas por actores convictos e convincentes, saía, por atalhos felizes, em busca de amadores do real. [os que não temem o amanhecer de cada noite]


O destino era sempre o mar, só por ser longe da serra guardiã de todas as falsidades... o mar revolto de vida, de ondas sorridentes, no espraiar de sentimentos enraizados nas acácias, que não queria perder.


Corrompia, no renascer de um percurso quase iniciático, todas as regras e montava o palco num delta de cordas resistentes. Abriam-se, então, novas audições... procuravam-se actores que amassem a vida, e não a imagem dela; que usassem as palavras na sua pureza denotativa, sem o exacerbar egocêntrico; que olhassem o passado como tempo de aprendizagem, e não como muro impeditivo da felicidade presente; que não seduzissem em todos os palcos, em peças repetidas, por demais conhecidas, e fossem tão-somente genuínos; que não procurassem aplausos de afectos nunca retribuídos, e soubessem apenas 'ser'.


Sentava-se, então, na areia, entrelaçava dedos noutros dedos e, num olhar partilhado, sentia-se num porto de abrigo... e a brisa trazia de volta todas as palavras de esperança, ancoradas na felicidade.



[Porque há palcos assim...]

Ensaio pelo 'paraíso'...


[... onde todas as palavras são desnecessárias.]

Ensaio por uma mão [numa cena do absurdo...]

[Luís]


Cenário quase vazio. Palco numa sentida obscuridade. No centro, uma cama imensa, com lençóis vermelho-sangue. Aos pés da cama, na boca de cena, duas quase personagens [sempre duas], sentadas no chão. Costas com costas. Em silêncio, cada um olha para um telefone que segura nas mãos. Ele e Ela, cabisbaixos... personagens de mais uma cena absurda de uma peça por inventar. Fim da didascália [ou talvez não]... Ela marca um número, coloca o telefone no ouvido e espera. Ele olha, demoradamente, o seu telefone, enquanto toca. Atende.

ELE - Alô...

ELA - Pulsam-me as palavras num delta de incertezas.

ELE - Insistes em contrariar-me. Quero a vida desfragmentada... debruçada numa janela de esperas.

ELA - O silêncio desliza nas tuas mãos gélidas de pátina... estendo-te a minha.

ELE - Odeio, quando as palavras me espiam.

ELA - Que ninguém conheça as que te sopro, na ilusão de um vazio linguístico... [sempre e se for para sempre? memória. tribunal. impressão. liga-me, por favor! operacional. fundação. mudança. buçaco. letras. acaso. arma. anarquia. saramago. dois. ou três. filhos. submersos. divórcio. brasil. mentira. vem! não venhas! fixo. livros. tantos. esquerda. solidão. sou de telhas! silêncios. medo. revolta. ordem. tomar. choro. sonhos. não é nada disso! templários. avô. loucura. neve. cabana. primavera. inspiração. mesmo que penses o contrário! saldo. acidente. revisão. bela... íssima... íssima...]

ELE - Céus! É o vento que ouço.

ELA - De que cor são esses olhos que teimas em esconder?

ELE - Tu sabes! Azuis...

ELA - Verdes, cor de relva-esperança onde os dias assumem o beijo da terra?

ELE (baixo) - Azuis...

ELA - Castanhos, cor de tronco-perene onde se enraizam todos os sentires?

ELE (cada vez mais baixo) - Azuis...

ELA - Estranha cor de céu-inalcançável.

Ele levanta-se e lança o telefone para o meio da cama vazia, sempre de costas para Ela.

ELA - Estendo-te a minha mão, cheia, apenas, de gestos comuns.

ELE (saindo de cena) - Vou fumar um cigarro.

ELA (permanecendo sentada no chão, olha o telefone, que segura entre as mãos) - Ligar-te para quê? Nunca atenderias!


Cai o pano.