Ensaio pela verdade semântica...

[Luís Rodrigues]


O 'outono' chegou diferente. Não falo dos dias quentes e solarengos com que nos tem brindado. Nem tão-pouco das noites vestidas desse vento boreal, desnorteado,  sem rédeas na intensidade desmedida. Falo de um outono minúsculo, que, à conta de um acordo tão desacordado, surge sem identidade própria. Sem a marca de orgulho de quem é nome não comum.
Como compreender que a minha estação perdeu a sua entidade única de ser, como diria Nietzsche, 'mais estação da alma do que da natureza'? Nasci no Outono... a estação de todas as verdades... o verde amarelece, lentamente, como tem de ser, relembrando que, na vida, há que mudar de papel; a luz não ofusca; a beleza dos troncos aparece ao cair da folha, não porque as folhas  envelheceram, mas porque há que dar espaço ao renascer da vida; a chuva, miudinha, não aborrece, lava todos pensamentos negativos, acumulados no estio desértico de sentimentos; o Outono fala a verdade dos "equinócios", procurando, mesmo que por breves momentos, mostrar que os dias e as noites são iguais; e os dias não ficam mais curtos, como se diz por aí, são as noites que ficam mais longas... ah! as noites, na sinceridade da estação da alma. Gosto do Outono.
Como entender, então, que, por decreto, o meu Outono não seja agora ele próprio? Perdeu a maiúscula!
E, de repente, imaginei o meu palco, minúsculo, também... perdendo a sua identidade. Visualizei todas as palavras, reclamando a sua maiúscula, numa peça absurda, em que as personagens olhassem uma lua, também ela minúscula, e lhe sentissem, pela primeira vez, a frieza de não ter luz própria. Pensei no pano vermelho, gasto de tanto ser aberto e fechado ao longo dos anos, desejando, ele mesmo um adjectivo 'escuro' preso por um hífen.
Sou do Outono. Com letra maior. Porque a minha alma anseia pela verdade semântica do sentir, que nenhum acordo mudará.


Ensaio pela palavra... [antes de o ser]




Cenário despido de adereços fúteis. Palco difusamente iluminado a verde esperança. No centro, imponente, um tronco de árvore. Duas personagens [sempre duas], uma em cada canto da boca de cena, olham o tronco, num silêncio respeitoso. Fim da didascália, de mais uma cena do absurdo.

UM - Talvez um dia haja forma de saber, porque o canto dos pássaros se pintou de ausência...

OUTRO - Talvez se possa descobrir onde se enraizaram todos os sonhos a haver.

[silêncio]

UM - Sentiremos, nesse dia, que o tempo não escorrerá pela ampulheta dos dedos solitários; que os dias amanhecerão, no eterno retorno de rasgos de felicidade; que a brisa suave apagará todas as marcas de memórias magoadas, dessa pele sedenta de vida.

OUTRO - Talvez o rio se embriague, no sorriso das folhas perenes... vigilante, no cântico doce de prazeres anelantes.  Talvez tenhamos de mergulhar de novo no desejo de ser.

UM - Aprenderemos, então, a desencarcerar todos os sentimentos cativos, pelos grilhões resistentes de quem não quis acreditar. Procuraremos a ara genuína, onde se resguarda a dádiva do amor. Seremos... um e outro, num futuro plural, num espelho inquebrável e natural, ramos férteis e frondosos de nós.

[silêncio]

OUTRO - Talvez falte algo...

UM [levanta-se, devagar, e dirige-se ao tronco que abraça, num sorriso] - "Talvez tenhamos de [nos] repetir à exaustão, pela vida fora,/ no oco dos troncos onde residem/ todas as cirandas de sol e pedra,/ antes de ser palavra".

Cai o pano.

[entre aspas, versos de Mel de Carvalho]

Ensaio pela saudade [imensa... de ti!]




Amanheci no recordar de dias felizes. Quase toquei a tua voz doce, quando me chamavas da cozinha, pintada do cheiro de café acabado de fazer: 'Gracinha? Onde estás?'... nunca ninguém disse, como tu, o meu nome... cada sílaba ressumava um carinho imenso, que eu te devolvia, num sorriso que gravaste para sempre no meu olhar. Nesses dias, colocava a minha cabeça no teu colo e deixava que as tuas mão meigas passeassem nos meus rebeldes caracóis, enquanto me falavas da vida. 
Contigo, aprendi que devemos perdoar, que devemos dar [-nos] sem receio, que devemos apregoar o nosso gostar, sem peias de vergonha... na tua voz cantada, lembrando a pacatez da imensa planície alentejana, quiseste ensinar-me o que é gostar. Falaste-me da ternura respirada, inconscientemente; dos afectos plantados em vasos coloridos, que espalhavas pela casa; das mãos cruzadas num desejo de calor tatuado na pele... 
Ah, minha Deusa Artemiza, minha saudosa Avó... hoje, amanheci na falta do teu colo. Queria dizer-te, baixinho, para que não te zangasses comigo, que tentei seguir a tua lição... no entanto, a vida ensinou-me que me poupaste ao verso da medalha! Não me explicaste que, por vezes, respiramos a solidão, que as plantas só dão flor se forem regadas com palavras de sentir, que as mãos também mentem... e que o mundo, lá fora, não é poesia.
Hoje, amanheci num desejo veemente de arrancar o meu coração e enviar-to, [para o panteão dos dias felizes], onde vives a eternidade de seres, para que cuidasses dele, resguardado nessas tuas mãos que sempre me falaram de amor...
'Gracinha? Onde estás?'
Aqui, minha Deusa das verdades felizes... pronta para beber o café! 

Intervalo...



Há um silêncio que se aquieta no ruído vermelho de todas as pétalas que não sei ler...

Ensaio pelo sorriso...


Há um avesso de mim, que nem eu entendo.
Finjo, então, que o palco é meu...
que conquistei um papel principal, nessa peça por inventar...
que não mais me esconderei nos bastidores...
... e sorrio, apenas, aos vestígios tão audíveis do silêncio, numa representação falhada.

Ensaio pelo 'lindo'...

Diz o dicionário que 'lindo' é um adjectivo de origem controversa. No entanto, não é a falta de clareza na origem da palavra que me incomoda. Nos últimos tempos, houve palavras que se esvaziaram de sentido na minha vida... talvez por vê-las usadas e abusadas em qualquer tipo de contexto, sem que lhes sentisse o verdadeiro sabor semântico. Tudo passou a ser 'lindo', 'linda', 'lindíssima', 'lindérrima'...
Ora, uma tarde destas, a palavra voltou a encantar-me...
Há uns meses largos, já durante os ensaios com os meus aprendizes da arte de dramatização, bateu-nos à porta, de uma sala de palco fingido, um miúdo de olhos límpidos. Com voz um pouco atrapalhada, disse apenas 'Vim para o Teatro!'. Perguntei-lhe quem o enviara e, ao ouvir o nome da minha colega do ensino especial, compreendi que tinha ali um jovem com características muito próprias. Recebemo-lo no grupo, reformulei a peça, para que tivesse uma personagem para representar. O D. vivia com uma alegria imensa cada dia de ensaio. Informei-me da sua problemática, bastante complicada, e, num dia em que o meu pequeno aprendiz foi a uma consulta de acompanhamento, conversei seriamente com os outros elementos do grupo. Compreenderam toda a situação e prepararam-se para qualquer eventualidade, no dia da apresentação da peça, para a comunidade local.
Os meses foram passando, o D. modificando a sua medicação... uns dias muito eufórico, fazendo o seu papel direitinho, outros dias sentado no chão da sala, sem sequer dar conta de que era a sua deixa para entrar em cena. Por vezes, encontrava-me no espaço de recreio da Escola, agarrava-se, então, ao meu pescoço, perguntando, quase ao infinito, ' Quando vamos representar??'... outras vezes, passava por mim, com um olhar perdido, e nem me via.
Uma destas tardes, aconteceu o dia tão esperado. Sala cheia... mais de quinhentas pessoas, para assistir à nossa peça. Tínhamos marcado encontro nos camarins, uma hora antes do início do espectáculo. Todos chegaram a horas e foram perguntando, ansiosos, pelo D. O meu menino chegou, pouco depois, já vestido para o seu papel e com um sorriso de orelha a orelha... os outros sorriram também. Aproximou-se a hora de iniciarmos a representação da peça que escrevi para eles "Um novo princípio"... atrás do palco, sentido o calor da plateia, aguardavam todos em silêncio, na escuridão de um dos lados do palco imenso. Do outro lado, ficou o D., junto comigo. No meio da escuridão, sentia a sua agitação. Dei-lhe a mão e pedi-lhe que ficasse quietinho, até entrar em cena. O pano abriu, ao som dos primeiros aplausos, e a peça começou. Ali, naquele lado do palco, escondidos pelo pano de cena, eu e o meu pequeno actor assistíamos ao desenrolar da peça... estava tudo a correr muito bem. Uns minutos antes de entrar em palco, o D. segurou mais forte a minha mão e disse baixinho, olhando para os seus companheiros que representavam: 'Professora, é tão lindo o teatro!'. Ouviu a sua deixa e entrou seguro em cena: "Ouvi o Batuque... o que foi que aconteceu?". Os outros respiraram de alívio e a peça continuou, já com o meu menino em palco. Sozinha, no escuro dos bastidores, apeteceu-me chorar... o meu menino tinha-me devolvido, sem saber, todo o verdadeiro significado de uma palavra que julgara perdida. 'Lindo.'

Ensaio por um tempo [que me foi roubado]...

[Luís]



Há uma força que se arrasta, lavrando as planícies do tempo. Rasgam-se sulcos em solo árido, na pressa errante de domesticar os instantes. O arado, numa azáfama consentida, arrasa o momento. Escraviza-se a vontade à sementeira das horas.


Há uma força que se entrega aos grilhões do tempo. Aferrolham-se os sentimentos, em ampulhetas-masmorras. O carrasco, numa desassossegada consciência, guilhotina os ponteiros. Sentencia-se o desejo à prisão dos minutos.


Há uma força que não se revolta, assimilando o vazio da ditadura de todos os tempos.


Bastava descobrir a flor indomável do deserto, cortar as grades da ansiosa janela, gritar planfletos irreverentes de liberdade.


Bastava ser o rasto lento de quem quer, somente, viver... com tempo.



[reeditado, porque hoje faz ainda mais sentido...]

Ensaio por um 'imenso' detalhe...





Há dias em que o palco abre o pano a todas as emoções... e a encenadora, sentada numa plateia de sorrisos sentidos, aplaude, apenas, com um coração cheio de palavras.


Hoje, foi um desses dias. O calor que se fazia sentir, na minha adorada cidade, antecipava uma tarde quente, na partilha de todos os afectos.


Ali, bem no centro do Campo Grande, a Maria João Martins apresentaria o seu livro de poesia, "Do outro lado do espelho". Há muito tempo que, num silêncio de admiração, a leio, no seu blogue 'Pequenos Detalhes'. Nunca quis deixar um comentário, um sinal da minha passagem, porque, tantas vezes, o que fica por dizer é o mais importante. Disse-lho hoje, num abraço sentido, cúmplice, de quem ama as palavras e respeita todos os que as sabem dizer... escrevendo-as, oferecendo-as, como numa dádiva límpida.


A sessão vestiu-se de uma simplicidade plena de sentires, palco onde só os 'grandes' se tornam 'inteiros', como tão bem souberam dizer a [querida] Mel e a Otília, ao apresentarem o livro.


Há dias em que o palco é maior, quando se representam, tão-somente, momentos de vida. "Tenho flores plantadas à minha espera", assim termina o poema da Maria João, que li durante a apresentação... um imenso detalhe, num jardim de poemas, hoje mais florido, porque regado a amizade.


[Que seja o primeiro de muitos, querida Maria João.]

Ensaio inventado...

[Luís]




Um dia, oferecer-lhe-ia um cais de esperas... onde cada chegada fosse genuína, e não máscara sedutora de um 'adeus' premeditado.


[bom fim de semana]

Ensaio sobre um palco real...

[Vila Nova de Milfontes]


Por vezes, a encenadora abandonava o palco de todas as representações e seguia, num trilho premeditado, em demanda da verdade. Cansada de encantamentos repetidos à exaustão, de palavras artifícios-literários ditas por actores convictos e convincentes, saía, por atalhos felizes, em busca de amadores do real. [os que não temem o amanhecer de cada noite]


O destino era sempre o mar, só por ser longe da serra guardiã de todas as falsidades... o mar revolto de vida, de ondas sorridentes, no espraiar de sentimentos enraizados nas acácias, que não queria perder.


Corrompia, no renascer de um percurso quase iniciático, todas as regras e montava o palco num delta de cordas resistentes. Abriam-se, então, novas audições... procuravam-se actores que amassem a vida, e não a imagem dela; que usassem as palavras na sua pureza denotativa, sem o exacerbar egocêntrico; que olhassem o passado como tempo de aprendizagem, e não como muro impeditivo da felicidade presente; que não seduzissem em todos os palcos, em peças repetidas, por demais conhecidas, e fossem tão-somente genuínos; que não procurassem aplausos de afectos nunca retribuídos, e soubessem apenas 'ser'.


Sentava-se, então, na areia, entrelaçava dedos noutros dedos e, num olhar partilhado, sentia-se num porto de abrigo... e a brisa trazia de volta todas as palavras de esperança, ancoradas na felicidade.



[Porque há palcos assim...]

Ensaio pelo 'paraíso'...


[... onde todas as palavras são desnecessárias.]

Ensaio por uma mão [numa cena do absurdo...]

[Luís]


Cenário quase vazio. Palco numa sentida obscuridade. No centro, uma cama imensa, com lençóis vermelho-sangue. Aos pés da cama, na boca de cena, duas quase personagens [sempre duas], sentadas no chão. Costas com costas. Em silêncio, cada um olha para um telefone que segura nas mãos. Ele e Ela, cabisbaixos... personagens de mais uma cena absurda de uma peça por inventar. Fim da didascália [ou talvez não]... Ela marca um número, coloca o telefone no ouvido e espera. Ele olha, demoradamente, o seu telefone, enquanto toca. Atende.

ELE - Alô...

ELA - Pulsam-me as palavras num delta de incertezas.

ELE - Insistes em contrariar-me. Quero a vida desfragmentada... debruçada numa janela de esperas.

ELA - O silêncio desliza nas tuas mãos gélidas de pátina... estendo-te a minha.

ELE - Odeio, quando as palavras me espiam.

ELA - Que ninguém conheça as que te sopro, na ilusão de um vazio linguístico... [sempre e se for para sempre? memória. tribunal. impressão. liga-me, por favor! operacional. fundação. mudança. buçaco. letras. acaso. arma. anarquia. saramago. dois. ou três. filhos. submersos. divórcio. brasil. mentira. vem! não venhas! fixo. livros. tantos. esquerda. solidão. sou de telhas! silêncios. medo. revolta. ordem. tomar. choro. sonhos. não é nada disso! templários. avô. loucura. neve. cabana. primavera. inspiração. mesmo que penses o contrário! saldo. acidente. revisão. bela... íssima... íssima...]

ELE - Céus! É o vento que ouço.

ELA - De que cor são esses olhos que teimas em esconder?

ELE - Tu sabes! Azuis...

ELA - Verdes, cor de relva-esperança onde os dias assumem o beijo da terra?

ELE (baixo) - Azuis...

ELA - Castanhos, cor de tronco-perene onde se enraizam todos os sentires?

ELE (cada vez mais baixo) - Azuis...

ELA - Estranha cor de céu-inalcançável.

Ele levanta-se e lança o telefone para o meio da cama vazia, sempre de costas para Ela.

ELA - Estendo-te a minha mão, cheia, apenas, de gestos comuns.

ELE (saindo de cena) - Vou fumar um cigarro.

ELA (permanecendo sentada no chão, olha o telefone, que segura entre as mãos) - Ligar-te para quê? Nunca atenderias!


Cai o pano.

Ensaio pelo esquecimento...

[Helena Nabais]


Lembrar-te-ás do meu nome, quando as últimas neves narcisistas derreterem na velhice da serra? Quando os arroios cristalinos e irreverentes se transformarem em rios sedentos de margens seguras? Quando observares o voo rasgado da águia, cansada de tanta sabedoria, no acumular das presas? Lembrar-te-ás do meu nome, quando o sol, num ocaso premeditado, te apagar da memória as asas de um sonho solitário?

Saberás ainda o caminho que te tracei, num cântico suave e doce, sussurrado pela brisa matinal? Conseguirás vislumbrar, no escuro firmamento, a Cassiopeia de desejos boreais que desenhei para ti? Compreenderás que eu não sombreio paredes frias de promessas vãs e anseio danças de verdade, na caruma dos pinhais?

Lembrar-te-ás do meu nome, quando as palavras se despirem de todas as tentativas falhadas? E todos os poemas gritarem o tédio?

Quando as flores obstinadas da Primavera cobrirem toda a montanha, saberás que em cada uma deixei, esquecidas, todas as lembranças de ti.

Ensaio?... [porque me apeteceu]





Chegarei!


Sei de um lugar longínquo
onde os dias renascem,
dissipando a espuma das noites,
no rebentar do sonho.


Sobre os trilhos sinuosos da floresta,

dançam silfos desenhados no ar.

Cingem regatos bem-aventurados,

num desejo veemente

que anticipa o eterno reencontro.


Cruzarei o fogo encantado,

chama viva de sentimentos por escrever...

Devorarei todas as cinzas da teimosa Fénix,

para que as palavras se renovem

à minha chegada.


Irei!


Espera-me no lugar de sempre!
Onde a poesia nos protegerá
do esquecimento dos deuses.

Ensaio quebrado...

[Luís]


"Professora, a vida é encadeada?"

Andamos, pelo palco escolar, à volta do texto narrativo. Mais do que depositar conceitos de teoria literária, nos meus lindinhos, gosto que reflictam sobre os textos, que reconheçam o efeito e o poder das palavras, que deduzam sentidos, que desfaçam ambiguidades, que recriem imagens a partir do que lêem. No entanto, a teoria é dada e, sempre que possível, posta ao serviço de uma boa troca de ideias.

Ora, na última aula, trabalhávamos um texto de José Rodrigues Miguéis e, a propósito da organização da narrativa, o meu lindinho lançou, num imenso sorriso, a pergunta. Sorri, também. Gosto que os meus alunos coloquem perguntas pertinentes. E ensaiei a resposta...

Em segundos, a imagem de uma corrente consistente ocupou a minha mente. Cada aro, um momento de vida, unido a um outro, numa sequência difícil de interromper. Laços de metal, quase inquebráveis... quase! Porque, por vezes, dava vontade de partir o grilhão, retirar os elos que enferrujaram e tornar a compor, como se nunca tivesse sido interrompido. Vontade, apenas. Impossível, tão-somente. A vida é encadeada, como a estrutura do conto em análise. Narrativa aberta, na ânsia de que um novo elemento da corrente faça esquecer os que 'enfeiam' o cordão. Breves segundos, para calar os meus pensamentos e devolver a pergunta à turma.

Assim, passámos o resto da aula, discorrendo sobre a vida e os momentos que cada um gostaria de retirar da sua corrente.

Longe dos propósitos de um Ministério burocrático, para quem seria difícil perceber o não cumprimento de um plano de aula. A minha.

Ensaio para mim...

[Luís]


Não há nada mais constante na vida do que a própria inconstância... Cito de cor, que me perdoe Swift.

Hoje, ao entrar nesta silenciosa representação de mim, senti o aroma triste da nostalgia, repassando do vazio do palco. Revisitei alguns momentos aqui gravados... das minhas aulas, dos meus sentires, dos meus desejos, dos meus ensaios verdadeiros, com os meus aprendizes da arte da dramatização.

Ao longo de um ano, a vontade de aqui estar foi-se esvaindo. Tive consciência de que o meu palco se bifurcara algures, entre a constância dos dias breves e a inconstância dos actores que foram entrando na minha peça. Não soube escolher... de repente, percebi que me deixara para trás. E isso era muito mais do que podia representar. Afinal, a cadeira de encenadora era minha. Apenas minha. Só eu poderia reescrever todas as cenas fracassadas, mudar as deixas gastas e repetidas à exaustão, apagar todas as saídas de palco.

Hoje, ao entrar no meu Teatrices, deu-me uma vontade imensa de sacudir o pó de todos os sonhos, acender os projectores do porvir e rasgar o pano dos dias falhados. Recomeçar ao meu jeito, na certeza de que me tenho sempre por perto, pronta para me estender a mão, sempre que o vazio se apertar nos meus dedos.

[Fora de cena, quem não é de cena e que se reinicie a peça.]





Ensaio por uma lágrima [que não caiu...]

[Luís]

Cristalizei todas as despedidas, na tristeza turva de um olhar. Rasguei cada palavra pensada... e gritei mais alto o silêncio.

Ensaio quase poético...

[Luís]

Despojo-me de semânticas gastas… e, no sossego das palavras por criar, rasgarei todas as utopias. Basta que floresçam anseios de sílabas orvalhadas ao amanhecer; basta que resvalem promessas nas encostas ditas de prazer. Basta que, na sombra do silêncio, se recolham todas as dúvidas…

E aí permanecer.

Ensaio pela renovação...

[Luís]


Adormecera no centro do palco, resguardada pelo peso de um pano cansado. E sonhou-se.

Sonhou-se barco, deslizando no rumor doce do rio, a esmorecer por entre as brumas. Sentiu o alargar das margens, clamando um desaguar perfeito nos braços de um mar revolto. Fez dessas águas o lavar das suas memórias; rasgou, na correnteza desenfreada, cada palavra não recebida; afogou todas as ausências não desejadas; fundeou cada desilusão trazida por silêncios permanentes.

Sonhou-se barco sem leme, ateado no seu peito, seguindo o seu curso de sentido único. E a noite já não era noite. E o pano de cena, abrigo da sua alma, abrir-se-ia a outros aplausos. E vogaria pela vida, ao sabor de uma indefinida inquietação. Renovando o seu papel a cada sinal de tormenta, nessa peça por inventar.