Ensaio pelo palco... [iluminado de palavras]

[Luís]

Desde manhã que ressoava, na sua consciência, o comentário proferido por uma das suas aprendizes das artes teatrais: "O palco assusta!".

Lá fora, o dia permanecia cinzento. De quando em vez, os céus libertavam sentires diluídos numa raiva de enchente. Sentou-se no silêncio escuro da sala vazia, numa das últimas cadeiras daquela plateia solitária, e olhou o palco. "O palco assusta!" tinha dito a sua lindinha, quando convidada ao improviso, sem papel, sem deixa, sem peça...

Olhou atentamente o palco, ocupado tão-somente pelas sombras disformes, desenhadas na pouca claridade que entrava pela porta entreaberta.

O palco não assustava... só as palavras gastas em peças de desilusão podiam causar algum receio. Só as palavras perdidas em monólogos repetidos assustavam. Palavras que nunca chegariam a ser 'falas', palavras vestidas de fingimentos, de intransponíveis semânticas. Palavras desprovidas de sentimento, palavras exaustas por não encontrarem destino, no labirinto da vida. Só as palavras ocas, petulantes, truncadas da verdade fariam oscilar o palco.

O seu olhar encheu-se de palco... um palco de saudade, onde se resguardavam as memórias felizes de outras representações. Lembrou, uma a uma, todas as palavras que iluminaram a sua peça feliz. Deixou que, no seu pensamento, se acendessem as falas desejadas, como velas frementes por reais despiques dialécticos... O palco assusta? Talvez, por breves instantes, enquanto se aguarda a entrada em cena. Depois, o palco enche-se de palavras e a vida acontece.

Lá fora, anoitecia num dilúvio que lavava a alma. Sentada ao fundo da sala, envolta pela escuridão, sentiu a saudade desse seu palco... e dentro de si choveu, também... uma chuva miudinha, que ninguém viu cair.

18 comentários:

Lídia Borges disse...

"O palco assusta, sim", pelo que tem de imprevisível, de risco, de exigência, mas também por isso estimula, convida à superação dos limites, ao sonho. E, assim se avança... apesar da "saudade de peças passadas" e de alguma chuva silenciosa e inibida que, às vezes, vem lavar a alma.
Beijo

Canto da Boca disse...

"O palco assusta", tanto quanto o palco da vida.....

Texto soberbo, Graça!!

Beijos!

Branca disse...

Olá Graça,

Gosto deste teu palco, saudades dos teus ensaios, embora este seja um ensaio pela desilusão, um ensaio sentido.
Todos os diluvios que lavam a alma trazem dias redentores.

Deixo beijinhos ternos
Branca

E G Miranda disse...

Não daria um bom actor, Graça. Porque o palco me assusta; porque temo engasgar-me, esquecer as palavras, ficar paralisado pelos olhares atentos de quem avalia o meu desempenho.
E no entanto, como todos nós, sou actor todos os dias, no palco da vida, ansiando os aplausos de uma plateia invisível e, quiça, entre tantos desconhecidos, o sorriso apreciativo de alguém capaz de reconhecer as minhas qualidades de actor anónimo...
Parabéns pela capacidade de falares das tuas paixões, do teu amor ao palco, não o da vida (não só o da vida), mas daquele onde ainda soam as pancadas de Molière.

Silêncio que o espectáculo vai ter início...

Nilson Barcelli disse...

Mas há quem pense que o palco chama...
Belíssimo texto, gostei imenso.
Beijos.

Marta Vinhais disse...

Tudo assusta...
Todos temos medo de cair...da desilusão, da tristeza...
Mas vale sempre a pena entrar no palco, mesmo que se tenha que improvisar a deixa....
Belo...
Beijos e abraços
Marta

A.S. disse...

Graça...

Essa chuva miudinha, que ninguém vê cair... acaba de cair também dentro de mim, numa manifestação de incomparável contentamento, porque se voltaram a acender as luzes do palco!!!
Entretanto, lá fora, o sol brilha intensamente... as palavras saltitam à minha volta, querendo compartilhar comigo a emoção que tomou conta dos meus olhos...

Beijos, querida Graça!
AL

rosa-branca disse...

Um palco de boas recordações e uma chuva de saudades. Que bom que voltaste amiga. Já tinha saudades de te ler. Beijos com muito carinho

Cristina Fernandes disse...

Um novo reinventar da vida que o palco suscita... a vida que se guarda, como a chuva que chove por dentro...
Beijo
Chris

Paulo disse...

Minha querida, então não me disseste que voltaste a abrir o teu palco?
Um ensaio tão teu, tão cheio do que magoa. Continuas sempre sensível às palavras, as que se dizem e as outras também.Tenho 3 para te dizer: Gosto de ti.

Beijo magnífico em ti.

O teu Paulo


PJB

São disse...

Regressaste? Fico contente por isso!E ainda mais porque foi a tempo de me fazeres o favor de passares pelo "são"

Um apertado abrço, linda!

Carla Diacov disse...

eh chuvinha boa!



beijão...
adorei tuas teatrices!


espero uma visita tua...

ficarei chovida de honrarias!

Carmo disse...

O palco sempre me assustou. Agora á medida que a Graça o vai desmistificando acho que era capaz de criar uma ligação com ele. Mas agora... agora o palco de que fala já não é meu. É dos mais novos.

Um beijinho e boa semana

Tentativas Poemáticas disse...

Um beijinho de Parabéns, com desejos de muitas felicidades, sobretudo com saúde.
António

Branca disse...

Querida Graça,

Parabéns também por aqui neste teu palco que é parte da tua vida. Ainda venho a tempo, ao fechar do dia desejar-te redobradamente tudo de bom.
E que os teus dias tenham sempre um saldo positivo de felicidade.
Muitos parabéns,
Beijinhos.
Branca

Nilson Barcelli disse...

Deixaste a luz acesa e não voltaste a publicar...
Fico à espera.
Querida Graça, boa semana.
Beijos.

Emília disse...

O palco brilhará sempre só com o fulgurante brilho do olhar da encenadora, ainda que a chuva miudinha caia sentida e silenciosa.

Pensador disse...

Sim, talvez o palco assuste.
Mas o palco assusta, não pelo palco em si. Não pela platéia diante da qual a peça é encenada.
Tampouco assusta pelas palavras que serão pronunciadas, ou pelos silêncios que serão feitos.
O palco assusta porque, sempre, no palco somos obrigados a encarar além da máscara do personagem que interpretamos. A todos e a nós mesmos.