Ensaio sobre nada...

[Luís]

Todos os dias, quando o 'pano' cai, no final de mais uma representação, há um momento solene, de silêncio breve. As palavras embatem no fechar da boca, rebelam-se, querem-se libertas num rasgo de pensamento. No entanto, a oclusão labial é mais forte. amuralha a vontade.

Este é um ensaio sobre nada, sobre aquele tempo que não existe, sobre um palco de peças vazio, sobre uma personagem que se diluiu numa máscara de cansaço. Este é um ensaio sobre palavras por haver, palavras gastas, despidas de semânticas falsas.

Este é um ensaio que não chegou sequer a tentativa. Perdeu-se nas inutilidades da repetição. Dos dias. De todos os dias em que o 'pano' cai e as palavras se agrilhoam.

Todos os dias, a encenadora resiste e insiste. Baralha as personagens, numa representação que ninguém entende... porque nem a encenadora entende!

Este é um ensaio sobre coisa nenhuma, sobre palavras desassossegadas, que só encontram paz na voz do Poeta. Seja.

"Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados como a um gato, a tudo quanto poderia ser dito." (Bernardo Soares)

Um intervalo [pela poesia]

[Luís]




Encriptou as estrelas no olhar, numa noite fria, sem tempo. Esperou, calmamente, que as sílabas colhessem a poesia do orvalho... e escreveu-se na rouquidão do vento.

Ensaio sobre a desilusão...




"Se olharmos as coisas de perto, na melhor das hipóteses chegaremos à conclusão de que as palavras tentam dizer o que pensámos ou sentimos, mas há motivos para suspeitar que, por muito que procurem, não chegarão nunca a enunciar essa essa coisa estranha, rara e misteriosa que é um sentimento." [José Saramago]

Andamos, pelo palco escolar, às voltas com aqueles momentos aterrorizadores, para qualquer aluno, que são as exposições orais. O momento em que se deixa o resguardo do colectivo, para encarar uma 'plateia'. Muito antes deste momento, trabalhámos algumas técnicas para falar em público. Entre tantos aspectos a ter em conta, reforçou-se a ideia de que há que olhar o outro, nunca fugir desse contacto, que prende a atenção, que passa a segurança de quem fala. Teoricamente, os ensinamentos são interiorizados, o pior é aplicá-los.

Hoje, um dos meus lindinhos, aluno daqueles que vestem esse papel, desde que entram na sala, levantou-se, quando chegou a sua vez, e literalmente arrastou-se até ao quadro. Virou-se para a turma, olhou para mim, no fundo da sala, e iniciou o seu discurso. Num instante, o seu olhar perdeu-se entre o branco sujo das paredes, defenestrou-se por janelas de vidros foscos, contou lâmpadas no tecto, fixou-se num chão de seguranças inseguras. No final da sua intervenção, dirigiu-me o seu brilhante e meigo olhar e, confrontado com o silêncio que se fazia ouvir, disse, quase num murmúrio :"Desiludi-a, Professora".

Faltaram-me as palavras, naquela fracção de segundo... "desilusão". A palavra ecoou na minha mente. Aliás, nos últimos tempos, ganhou dimensões indizíveis na minha vida; ocupou um espaço que, há tanto, permanecia vazio; gravou-se em mim, como que aspirando a sentimento. O que era a desilusão de um miúdo de treze anos, na sua primeira experiência de comunicação formal, não encarar o olhar dos outros, comparado com os adultos que, conscientemente, nos negam essa verdade? Respondi, rápido: "Desiludir? Não tinha criado ilusões... Na próxima, fará melhor, de certeza."

E o pensamento de Saramago? O resumo, não da aula, mas da minha representação, por estes dias, neste palco da vida.


Ensaio pelo palco... [iluminado de palavras]

[Luís]

Desde manhã que ressoava, na sua consciência, o comentário proferido por uma das suas aprendizes das artes teatrais: "O palco assusta!".

Lá fora, o dia permanecia cinzento. De quando em vez, os céus libertavam sentires diluídos numa raiva de enchente. Sentou-se no silêncio escuro da sala vazia, numa das últimas cadeiras daquela plateia solitária, e olhou o palco. "O palco assusta!" tinha dito a sua lindinha, quando convidada ao improviso, sem papel, sem deixa, sem peça...

Olhou atentamente o palco, ocupado tão-somente pelas sombras disformes, desenhadas na pouca claridade que entrava pela porta entreaberta.

O palco não assustava... só as palavras gastas em peças de desilusão podiam causar algum receio. Só as palavras perdidas em monólogos repetidos assustavam. Palavras que nunca chegariam a ser 'falas', palavras vestidas de fingimentos, de intransponíveis semânticas. Palavras desprovidas de sentimento, palavras exaustas por não encontrarem destino, no labirinto da vida. Só as palavras ocas, petulantes, truncadas da verdade fariam oscilar o palco.

O seu olhar encheu-se de palco... um palco de saudade, onde se resguardavam as memórias felizes de outras representações. Lembrou, uma a uma, todas as palavras que iluminaram a sua peça feliz. Deixou que, no seu pensamento, se acendessem as falas desejadas, como velas frementes por reais despiques dialécticos... O palco assusta? Talvez, por breves instantes, enquanto se aguarda a entrada em cena. Depois, o palco enche-se de palavras e a vida acontece.

Lá fora, anoitecia num dilúvio que lavava a alma. Sentada ao fundo da sala, envolta pela escuridão, sentiu a saudade desse seu palco... e dentro de si choveu, também... uma chuva miudinha, que ninguém viu cair.