Ensaio à minha Deusa...

[Luís]

A minha relação com os deuses nunca foi favorável. Ou nunca existiu. Uma relação pressupõe um laço de afectividade entre duas pessoas. Ora, impossível esta ligação. Apenas. No entanto, hoje, lembrei-me de Cronos e de como gostaria de lhe pedir que anulasse o mês de Agosto da minha vivência do tempo.

Inevitável associar este mês à tristeza com que todos os dias recordo a tua partida. Fazes-me falta, tanta falta. Ainda sinto o calor da tua mão na minha, quando, na calma do silêncio, apaziguavas a minha rebeldia feita palavras. Ainda vejo o sorriso meigo com que secavas todas as minhas lágrimas. Ainda te sinto, num abraço intemporal, quando me resguardavas da vontade imensa que sempre tive de partir. Ainda ouço a tua voz cantante, no embalo suave com que tentavas distrair-me da árdua tarefa que, pelas manhãs, te cabia... pentear-me a farta cabeleira encaracolada. E eu premeditava a fuga, e tu, no meio de uma gargalhada, dizias que até as 'Graças' se penteavam, para poderem acompanhar Afrodite. Eu serenava e calava a dor que o pente trilhava nas ondas castanhas, em nome da Deusa do Amor. No tempo em que me fizeste quase acreditar que a relação com o divino era possível.

Ensinaste-me a ser o que sou. Como sou. Ensinaste-me que os sentimentos se dizem, sem pudor, nem receio, nem exigências de retribuição. Ensinaste-me que os dias são vividos um de cada vez, como se fossem únicos, como se contivessem em si a aurora da felicidade, em ciclos repetidos que recusam o ocaso. Ensinaste-me a cultivar os meus sonhos, em pequenos vasos, arrumados desordenadamente nas varandas da minha alma, e a regá-los todos os dias com sorrisos líquidos de persistência. Ensinaste-me a arriscar tudo, porque a passividade do nada é tão sem-sabor. Ensinaste-me a ser tolerante com o outro, porque é impossível sermos sós. Ensinaste-me o poder inabalável do 'nós', no respeito pela diferença essencial do 'eu' e do 'tu'. Ensinaste-me a vida, quando me contavas, em jeito de narrativa aberta, momentos da tua. Fazes-me falta.

Partiste num mês quente de Agosto e eu gelei. O Tempo roubou-me a tua presença. Ironicamente, quis levar-te para o panteão dos Deuses. Porque tu não tinhas só nome de Deusa, minha Avó Artemiza, eras uma Deusa. A única em quem eu acreditei, porque verdadeiramente Humana.

[Fazes-me falta. Tanta falta.]