Intervalo [...]

[Graça]


Diluir o sonho num palco itinerante. Partir. E na equidistância das asas, nas palavras paralelas, procurar um ponto de fuga, divergente, convergente... um ponto, apenas, onde se invente nova peça. Partir... para que o pano de cena não se desgaste no vazio!


Um ensaio estranho... [reeditado, porque sim!]

[Luís]


Quando, em Junho de 2009, ensaiei este texto, intitulei-o de "estranho". Curiosamente, um dia destes, alguém me falou dele... Hoje, voltei lá, para reler... e estranho mesmo é que a passagem do tempo não mudou uma única vírgula na intenção com que foi redigido. Hoje, repensei-o e trouxe-o comigo, porque sim!

A casa tinha sido roubada ao mar. Repousava, agora, nas dunas de uma praia, sustentada em paredes de sal. O silêncio, no interior vazio e taciturno, gritava ondas de incerteza. O rumorejar do vento aliciava as cortinas feitas de algas sofridas. Janelas derrotadas na cor da maresia.

Nessa tarde primeira, sobre a areia fina e quente, a casa respirara a saudade de tantos sonhos navegados.... os olhos secos clamaram o chão líquido que, ao fundo do areal deserto, se estendia, sedutoramente, em espuma de desejo.

A casa fora, sem saber, sem esperar, roubada ao mar. Naufragara na aridez da terra. Partiram-lhe a quilha do seu bolinar onírico. Rasgaram-lhe as velas de uma vida insuflada de ideais. Derrubaram-lhe o mastro que sustentava o porvir...

No entanto, sentia, nos alicerces da sua construção, uma perene crença... Seria, então, casa da praia, no cimo de uma duna. Em cada divisão, guardaria um sonho... em cada porta marchetaria um ideal... abriria as janelas a cada novo dia... viveria longe do seu amor, é certo, mas nunca, nunca seria um castelo de areia desfeito pela indiferença do mar.

Ensaio reescrito [no sentir das palavras]...

[Graça]


Entrou, sem pressa, na sala vazia e atravessou a plateia, envolta na escuridão... a mesma com que lhe pintaram os pensamentos, naquele dia.

Subiu ao palco e contemplou as cadeiras ordenadas, desprovidas do calor do público. Não pretendia assistência. Desejava apenas reencontrar-se com o que fora... dispensaria adereços falaciosos, cenários prováveis e nunca reais. Prescindiria de "falas" gastas, na repetição de uma peça sem criatividade, ornada de palavras que só magoavam...

Fechou, então, o pano e, na segurança da solidão dos bastidores, procurou o seu Poeta. Porque, por vezes, precisava do saber-dizer de um poeta... quando sentia que o mar, fugidio e teimoso, insistia em esconder o cais, onde sempre quisera aportar; quando se gastava em ondas de sentimentos que nenhuma rocha compreendia; quando, no adensar das nuvens, tentava vislumbrar um farol de entendimento; quando o vento, disfarçado de doce Zéfiro, lhe soprava, do alto da serra, imperativos adversos ['que se rasgue o sonho'].

Procurou o seu Poeta, não um poeta qualquer, não um vendedor de sonhos lacerados, ainda antes de poderem ser sonhados...o Poeta. Abriu o seu livro, como sempre fazia, ao acaso. [Não são as palavras acasos de coincidências da vida?] E lá estava o seu sentir, retratado letra a letra:

"O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço." [Álvaro de Campos]

Simples, tão simples! Reconheceu-se: cansada! Fechou o livro. Regressou ao palco e abriu o pano, num sorriso pleno. Estava pronta para recomeçar, noutra peça, talvez, onde as palavras a fizessem feliz!

Ensaio verdadeiro [repetido no sentir...]

[Graça]

A representação, por este palco, faz-se também de peças naturais. O pano fecha-se, gasto dos actos maiores, burocráticos e monótonos. A plateia esvazia-se, indiferente ao climax do enredo... os projectores apagam-se, cansados de tanta artificialidade. Fico eu. Num entreacto.

Posso, finalmente, encenar a distância que medeia entre o fim e o princípio, por esta ordem, porque a verdadeira. Construo, então, avidamente uma peça de cenas soltas, quadros aleatórios, personagens sem papel definido, em teatros por inventar. Abdico do ponto, dispenso contra-regra, ignoro as vozes que me chamam dos bastidores.

Alinho, num desalinhavo de sentir, as falas que suportarão cada deixa. Falas curtas, projectadas em vozes aladas... falas absurdas, propagando certezas num anfiteatro sem velário. Sai a trama, urdida em fios de palavras soltas... uma pausa... uma estrada... uma casa... um jardim... um sorriso... uma hortênsia... um segredo... um monte... um silêncio... um céu azul pleno do teu olhar... um desejo. Nasce a peça... no anseio de outras representações.

Neste palco verdadeiro... subo o pano, na saudade desse intermédio de mim.