Ensaio pelo recomeçar [sempre...]

[Luís]



Antes que as palavras adormecessem de cansaço... antes que o sorriso esmorecesse no desejo insensato de acreditar... antes que a perversidade intencional do deus-do-vazio a fizesse esquecer de quem era...

... trilhou, resoluta, o cais lacerado, afogou-lhe o oscilar das certezas, ignorou o desgaste dos dias e embarcou. No propósito simples de recomeçar!

Ensaio pelo amanhecer...

[Luís]


[Quando as palavras da encenadora se rasgam num voo de ocasos...]

"Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:
com ele se entretém
e se julga intangível.
Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.
Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo."

[António Gedeão]

Ensaio pelo adeus [num voo inevitável]

[Luís]


Pelo palco escolar, os dias já segredam a inevitável despedida. A um mês das últimas aulas, os meus lindinhos aproveitam qualquer contexto para falar desse dia. O último. Esse que, nas contradições próprias da existência, desejam e não desejam. Será um voo, ainda de asas acanhadas.

Quando chegaram à minha vida, traziam a inquietude de quem não quer ser criança, mas ainda não é tratado como um adolescente. Vi-os crescer, durante três anos, literalmente "adolescer". Comigo partilharam as dúvidas da mudança, as lágrimas de dor, de raiva, as primeiras paixões, os problemas que não esperavam, mas acontecem. Deram-me sorrisos abertos, no amanhecer de cada dia... encheram as minhas tardes com o calor brilhante dos seus olhares. Sei que cada um, de forma diferente, me guardará no seu "baú" de recordações. E voltarão, como todos os outros, durante anos, para me darem a alegria dos seus objectivos concretizados, dos obstáculos ultrapassados, para que eu assine a fita de final de curso, para que eu saiba dos seus primeiros empregos... e tratar-me-ão sempre por "Professora"... é uma história repetida, ao longo destes quase vinte anos, em cima deste "palco" que amo e que é a minha profissão.

Hoje, era dia de balanço final do estudo da obra de Camões, Os Lusíadas. Dos preconceitos iniciais, nem um resquício... apreenderam que, para se falar de algo, é preciso conhecer. Falaram, então, de simbologias, de uma viagem metaforizada em percurso de vida, e escolheram o momento que mais gostaram. O Canto IX. Sem qualquer hesitação. Sorri... porque não faz parte dos programas de Língua Portuguesa... mas não resisto. Dou-o na íntegra.

A aula transfigurou-se, rapidamente, na defesa da actualidade da mensagem de Camões. Centralizaram-se no momento em que Cupido, furioso com a Humanidade rebelde, [porque ama erradamente], resolve preparar uma guerra exemplar, contra os que amam o que 'foi criado para ser usado e não amado', contra os que amam mais os animais do que as pessoas, contra os que só se amam a si próprios, contra... contra... os que têm medo de amar.

Conclusão de um dos meus lindinhos: "Nada mudou, desde Camões!".

Neste momento, em que cada palavra pronunciada se veste do fatal "adeus", que germine nos meus lindinhos a semente que tentei plantar, em cada um, de respeito pela sua língua, pelos seus Poetas, por todos os artífices das palavras... de respeito por si próprio... de respeito pelos outros. Do respeito, nascerá o amor. Uma plantação de amor, enfim.

Intervalo [pela verdade...]


[Teresa Ribeiro]


"Mãe!

Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei. Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!

Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando passas a tua mão pela minha cabeça é tudo tão verdade!"


[Almada Negreiros]


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... porque nunca escrevi, neste meu palco, sobre a minha Mãe... e, hoje, sempre, preciso da sua mão na minha cabeça...