Até...

[Graça]



Talvez o pano volte a subir. Talvez os ensaios se renovem. Talvez os intervalos se encham de palavras... Talvez.


[Obrigada a todos por serem... ]

Num intervalo [sei-te...]

[Luís]


Sei-te para lá da monotonia caótica dos dias, numa demanda pela ara templária, onde receberás a oferenda da inquieta ordem. Sei-te em escalada telúrica, pela serra guardiã de todos os sonhos, na crença irreverente de que afastarás cada nuvem do turbilhão do pensamento. Sei-te espelho da multiplicidade de "eus" que te assolam, que te acendem estrelas no cerúleo olhar. Sei-te alma em espiral dissonante, agnóstica até de ti. Sei-te num acaso de silêncios que são palavras, que são beijos, que são palavras-beijos plagiadas do teu discorrer inconstante. Sei-te hermético, na certeza da genialidade tecida letra a letra. Sei-te desejo liquefeito, quando, no frio escuro da noite, um sussurro quente e imperceptível se encosta ao teu ouvido... Sei-te. Céus! Sei-te tão pouco!

Sabes-me [...] num aprendizado de convicções, pleonasticamente convictas. Por ti.

Ensaio pelo passado [presente...]

[com 15 anos, tirada pelo meu Pai]

Nunca fui muito de relembrar o passado, nem de fomentar esse sentimento saudosista tão português. Gosto do presente, viver cada dia como se fosse único, porque irrepetível. Sempre considerei pouco produtivos os discursos repetidos à exaustão, por algumas pessoas que me rodeiam, e que começam, invariavelmente, por "se": se tivesse menos 'x' anos... se, naquela altura, tivesse tido coragem... se tivesse... se não tivesse... se... se...

Tive a sorte de nascer numa família que nunca foi apologista de peias. Percorri o meu caminho, numa liberdade consentida, que me permitiu aprender com os erros, porque os cometi... chorar as minhas tristezas, porque as tive... construir a minha felicidade, porque a procurei.

Vem isto a propósito de há quase três décadas, devia ter 15, 16 anos, ter assistido ao meu primeiro grande concerto: Spandau Ballet. Lembro-me de, num dia ao jantar, ter pedido ao meu pai, se me deixava ir. Era sempre mais fácil começar pelo meu pai! Nunca me recusara um pedido. Apesar de não entender o que me levava a quer ver aqueles jovens, que 'só faziam barulho', para reproduzir as suas contidas palavras, lá foi, entre uma garfada e outra, lançando as perguntas verdadeiramente paternais... onde era o concerto?... a que horas acabava?... com quem ia? Cedo aprendi que todas as perguntas merecem uma resposta. E mais cedo ainda compreendi que a 'chave' do sucesso só podia ser a verdade. Assim, obtive a minha permissão.

Escrevia, há pouco, que os dias são irrepetíveis... no entanto, hoje à noite, repeti as duas horas vividas há mais de 20 anos atrás. Fui ver os Spandau Ballet. Só o local foi diferente. A mesma companhia [na felicidade de quem tem amigos perenes], as mesmas músicas, a mesma alegria. Por momentos, fechei os olhos, no meio daquela multidão revivalista, e quase senti o tempo parado. Por instantes, tive uma breve visão da miúda que fui. Sorri. E abri os olhos... sem razões para saudosismos.

Ensaio na plateia [nossa...]

[da internet]


Na véspera de mais um dia 'convencionado', ensaio baralhar o calendário, de mulher vestir o papel de filha, e parar o tempo burocrático num sorriso de cumplicidade. Ensaio pelo meu Pai.

Quem se tem sentado, nesta minha plateia, ao longo destes dois anos de um palco tão cheio de mim, sabe o quanto gosto de bailado. Conhece também o quanto o meu Pai labutou, para fazer germinar em mim o gosto pela música clássica. Ontem, unimos as memórias de tempos sempre felizes, contrariámos os ponteiros incansáveis na voragem dos dias, e fomos ao ballet. Nem dia da Mulher, nem dia do Pai... unicamente, dia de Nós.

Há muito que a vida nos devia este momento. A Bela Adormecida, de Tchaikovsky, baseado no conto de Charles Perrault, é um bailado lindíssimo. E, quando dançado pelo Moscow Ballet, é de uma indizível beleza. No palco, em pontas de sotaque russo, os bailarinos, numa simbiose perfeita, tocaram magnificamente a música, como se instrumentos humanos fossem. Na plateia, eu e o meu Pai partilhámos o mesmo brilho no olhar, de quem entende, no silêncio, a alegria de estar ali, cúmplices num amor que não carece de palavras.

Há dias e dias... uns abrem noticiários por todo o mundo, outros mascaram-se de hipocrisia em comemorações internacionais... o nosso, meu e do meu Pai, vive-se diariamente, num calendário solene, onde apenas se agradece a existência partilhada... assim!

Intervalo [tão perto...]

[Luís]


Sei de um lugar onde silfos irrequietos cantam desventuras passadas. Onde o musgo esconde passos magoados por uma uma dança interrompida. Onde as nuvens clementes resguardam o pranto, por entre sorrisos alados. Sei de um lugar onde, na quietude das pedras, fervem desafios permanentes, que se demoram na escalada dos dias. Onde o bramido da serra promete disparos de verdade, arremessados pelo cristalino olhar. Sei de um lugar onde se acendem palavras de harmonia, simbolicamente esgotadas, na tempestade que se inventa em intervalos de nada.

Sei desse lugar, tão perto, tão dentro de mim.