Último ensaio...

[Luís]


Esperou, calmamente, que o público abandonasse a plateia. Na sala vazia, desligou, um a um, os cansados projectores. E sentou-se no meio do palco, abraçada pela escuridão. Fora a última representação de uma peça difícil de pôr em cena. A sua.

Nunca fora dada a despedidas. Pronunciar um "adeus" sempre lhe soara a renúncia, a desistência... palavras que há muito retirara do seu vocabulário. No entanto, sabia que o tempo não perdoa, incansável na sua voragem de passar... só por passar.

Era, então, tempo de terminar. Não faria analepses sobre os ensaios plenos de sentires, nem guardaria memória dos intervalos que lhe aligeiraram a alma. Muito menos deixaria vogar no seu pensamento, em prolepses desnecessárias, pedidos ritmados pelas dozes badaladas, ou desejos embebidos em champanhe. Concluiria, apenas.

Levantou-se e, no centro do palco, lembrou a "deixa" repetida à exaustão: ano novo, vida nova. Sorriu, por contrariar a sabedoria popular... não queria uma nova vida! Amava a sua. Quanto ao ano novo, seria, unicamente, mais um ano... Na escada da sua existência, 365 degraus a subir. Sem receio de tropeçar... Avançaria com a certeza de que, sempre que fosse imprescindível, representaria esse papel, que conhecia de cor, de resistente corrimão.

Fechou o pano e saiu.

[... que o vosso ano seja tudo o que desejarem...]

Intervalo [pela verdade da poesia]

[Luís]



"Sobre um sonho desfeito erguer a torre
Doutro sonho mais alto, e, se esse morrer,
Mais outro, e outro ainda, toda a vida!"

[Florbela Espanca]

Ensaio repetido [como o Natal...]

[Graça]

Há dias em que me apetece rasgar, letra a letra, as palavras que não escrevi. E os pensamentos?... perdê-los, feitos pó, num canto dos meus bastidores. Há dias em que se sente o aproximar de outros dias a que me apetece faltar...

No entanto, o sentir não muda... ficam, por isso, as palavras que têm um ano, mas que se mantêm iguais. Representar é também repetição...

Não há como fugir do Natal! Mesmo que se queira. Ainda que se evoquem tristezas, que se critiquem gastos, que se relembrem misérias, não há como evitar-se.
O Natal chega de mansinho, com o mês de Dezembro. Anuncia-se nas iluminações que invadem as ruas das cidades. Passeia colorido em cuidadosos embrulhos, ao som dos passos apressados. Arruma-se em montras com árvores cónicas. Espalha-se a branco sintético nos vidros transparentes. O Natal veste-se de vermelho anafado com barbas de algodão. Pendura-se artisticamente nas janelas que nunca se abrem. Articula-se na boca de toda a gente, acompanhado desse adjectivo Feliz, tantas vezes com entoação de antónimo.
Mesmo que alguém tente resistir, o Natal entranha-se na existência. Adocica-se em massa de sonhos, orgulhosamente empilhados em balcões de pastelaria. Chama-se Rei no bolo. Disfarça-se de bacalhau cozido, ou modernamente fingido por entre natas. O Natal reclama os holofotes do último mês do ano.
Mesmo que alguém não queira, é absorvido pelo espírito em crescendo, que termina nessa noite recheada de família... Uma noite que se exige alegre. Sem piedade dos lugares que, à mesa, foram vagando. Vidas ceifadas na seara da nossa vida.

É quase Natal. E só por isso escrevo estas palavras. Porque, mesmo que eu não queira, o Natal ressoa na minha mente. Não me deixa fugir.

Então, que FELIZ seja a minha e a VOSSA existência.

Quanto ao Natal... não há como fugir! Seja.

Ensaio pelo voo...

[Luís]


Anda cansado o meu palco. O pano oferece resistência à abertura dos escassos ensaios. A encenadora tem os dias gastos à nascença. Noutro palco, o escolar.

Desde o início de Novembro que, eu e os meus alunos, andamos a voar, por esse mundo infinito de sentidos que é o texto poético. Esvoaçamos por entre as palavras, desfazendo ambiguidades, apreciando usos figurativos, procurando associações, aclarando vivências. Eles gostam... eu fomento!

Nas últimas aulas, levei comigo uma parte da plateia deste Teatrices. Todos poetas que eu admiro. A Lídia, o Joaquim, a Isabel, a Branca, o Vieira Calado, o Nilson, a Paola. A primeira proposta foi simples. Ouviram os poemas, lidos por mim, e depois, a pares, tinham de escolher um dos nove, que tinham à sua frente. O objectivo inicial era pô-los a argumentar, com o colega, a sua escolha. No final, teriam de ter um único poema para defender e apresentar, oralmente, aos restantes colegas. As discussões começaram... um gostava mais deste poema, porque estranho... o outro preferia aquele, porque mais acessível. Argumentar nem sempre é fácil, no entanto, os meus lindinhos lá conseguiram chegar a consensos.

Seguiu-se a apresentação, à turma, da escolha de cada par. E foi uma delícia ver os meus meninos defender o "seu" poema, como se de um tesouro se tratasse. Aduziram argumentos, todos válidos, para quem desconhecia tudo sobre o poeta, para quem só tinha um poema como referência... falaram de gostos, de assuntos, de sentimentos, de aspectos formais, das palavras... tantas palavras. Ficou-me na memória a conclusão de dois dos meus alunos, no final da sua exposição... que, provavelmente, a interpretação que deram ao poema, não teria nada a ver com a verdadeira intenção do poeta, mas isso que importa. O que é a verdade, num poema? - perguntava a minha lindinha. E o seu colega rematou, dizendo que o poema pertencia a quem lê, portanto, era correcta a análise que fizeram. E eu sorri...

Os Poetas, que levei deste meu palco, foram as asas que permitiram aos meus alunos o voo pelo discurso argumentativo.

O trabalho continuará, poema a poema, numa análise mais cuidada, porque, no meu palco escolar, o pano nunca se fecha à representação das belas palavras.

Ensaio roubado [ao Poeta]...

[Luís]


"Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectáculo que posso." [Fernando Pessoa]

... porque há dias em que só um Poeta me entende.

Ensaio narrado [no silêncio]...

[Luís]


Sempre gostara do silêncio. Respeitava-o incondicionalmente. Ouvi-lo era, tantas vezes, o apaziguar do seu preenchido mundo de palavras. Gostava do silêncio após a tempestade, quando a Natureza, depois de chorada a ausência e gritado o vazio, repunha a sua energia, na quietude do verde murmurante. Gostava do silêncio inquietador da cidade, quando o calar da noite abarcava as estrelas num dormir apressado. Gostava, essencialmente, do silêncio da casa, que gotejava ainda sussurros de emoções e se reflectia, ao amanhecer, no abraço daquele olhar esverdeado.
Sempre gostara de silêncios, mas nunca compreendera o silêncio de uma não-resposta. Por isso, naquele dia, decidira embrulhar todas as perguntas ignoradas, todas as palavras falhadas, as mensagens não entendidas, o canal destruído, o referente descontextualizado, o emissor solitário, o receptor inerte. Envolveu toda a falta de comunicação, num papel pardo de certeza. Chegou determinada ao cais edificado pela razão. Lançou o pesado embrulho no primeiro barco errante que encontrou. Ancorada na tristeza, viu-o partir. Silenciosamente. E desfez o cansaço na espuma sonora das areias.