Um agradecimento...

[Luís]


Podia evocar as ondas onde os deuses flutuam e tingir, com as cores do poente, um barco de esperança.

Podia abarcar os sons da floresta, grafados, no calar de um segredo, em folhas frágeis e tão perenes.

Podia homenagear a mão criadora e universal, plena de promessas nunca quebradas.

Posso... tão-somente, enraizar o agradecimento num sorriso sentido.



[Obrigada, querido Henrique]



Ensaio por um dia...

[Graça]

Existem dias, no meu sereno "palco", que mais parecem versos escandidos, em métrica infinita. O meu dia, que agora termina, foi, sem dúvida, um poema.

A manhã trouxe os meus lindinhos ávidos da continuação dessa narrativa, quase lírica, que é "O Conto da Ilha Desconhecida", de Saramago. Tínhamos iniciado a leitura na aula anterior... o texto é difícil. A professora facilita: lê para eles. A cada paragem, soltavam-se as perguntas, na intenção de descobrir o que se esconde "por detrás das palavras". Simbólico, o conto. Parámos numa das frases, "Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar". Partimos, então, para o desbravar do pensamento. E lá foram saindo as primeiras tentativas de definir o "gostar", de aclarar a "posse". As ideias, defendidas acerrimamente pelos meus jovens, vestiram-se de estrofe de rima solta.

Ao fim de noventa minutos de Língua Portuguesa, passámos para o Estudo Acompanhado. E o poema ganhou forma. Literalmente. Produção escrita de um texto colectivo. Um poema. Gostam desta actividade, que vai nascendo, palavra a palavra, com a colaboração de todos, no ainda quadro negro. Desta vez, propus que escrevessem um texto poético, a partir de um verso de Eugénio de Andrade. "Dai-me outro Verão nem que seja" - escrevi no quadro. O silêncio, que surgiu, antecipava a dificuldade da aula, mas rapidamente se embrenharam na tarefa e lá íamos registando pequenos pedaços poéticos, que em nada envergonhariam o original... Depois de muita discussão, de muito escrever e apagar, decidiram que o texto falaria das quatro estações, num campo semântico negativo, até chegar à Primavera, última estrofe de esperança. Registo, unicamente, o início de cada estrofe-estação: "Dai-me outro Verão nem que seja/o traço de um amargo perfume"; "Dai-me esse Outono incerto/ainda que mar de constantes penas"; "Dai-me outro Inverno nem que seja/o veneno de uma promessa quebrada"; "Não! Dai-me antes a Primavera/onde quero voltar a entrar". Talvez, noutro ensaio, caiba todo o poema.

O meu dia continuou pleno de sentimento lírico, no cair da tarde, ao ler as palavras simples que alguém me deixara: "Na placidez dos dias, o meu olhar demora-se em ti, feliz como uma véspera!".

Chegou a noite. Lisboa. Coliseu. La Traviata. Já por aqui partilhei o quanto gosto de ópera, desta em particular... o meu dia terminou com essa história cantada de um amor impossível. Abandonei, por momentos, o "palco" habitual, refugiei-me, finalmente, na plateia e deixei que a música de Verdi fosse poesia para os meus ouvidos.

Bom fim de semana!

Ensaio rápido...

[Graça]


Marchetou o pensamento no verde agreste da paisagem. Esmoreceu um sorriso na afeição magoada das pedras.

Calou o olhar, no eco ingente dos passos feitos estacas. Mordeu o desejo insensato de perfazer a distância de uma ponte. Atou os braços na promessa de um abraço vazio. Lacerou cada palavra não-dita, no envergonhado curso de água.

E partiu.

Improviso [um ensaio apenas]

[Graça]

De volta ao palco. Cenário reduzido a nada. Luzes – só a claridade breve de um fim de tarde, que rompia pelas frestas das janelas. Silêncio na sala. Ensaio apenas.

Boca de cena. Duas quase personagens, olhando o vazio, lado a lado. Fim da didascália. As falas…

UM – Como se dirá a despedida?

[sem gestos, sem movimento]

OUTRO – Com um “adeus”, talvez…

[sem um único movimento]

UM – Sem mais palavras?

OUTRO – Mais palavras só adiariam o momento…

[silêncio prolongado]

UM – Guardaremos as memórias que ainda dançam nas paredes?

OUTRO – O melhor é deixá-las ir nos escombros…

UM – Conseguiremos recomeçar?

OUTRO – O fim é sempre início de algo…

[cada vez menos luz na sala]

UM – Sentiremos saudade?

[silêncio, nenhum gesto, nenhum movimento]

OUTRO – Lembrança grata de alguém ou de alguma coisa de que nos vemos privados…

UM – Sentiremos saudade?

OUTRO – Um palco, uma plateia, uma peça, uma representação…

UM – Sentiremos saudade?

OUTRO – Talvez, não sei... sim, acho, sempre que ouvir a palavra “teatro”… ou sempre que não a ouvir…

UM [saindo] – Adeus…

OUTRO [imóvel] – Talvez haja tempo para mais um ensaio.

Ensaio sobre o silêncio [imposto]...

[Luís]


Acordou cansada... não subiria ao palco, nesse dia! Sentia-se arrasada, por tanta representação sem retorno. Procurou, então, no guarda-roupa, as vestes com que habitualmente se disfarçava: doce, poderosa, grave, sensual, incisiva, meiga...

Nenhuma se adequava ao seu estado matinal. Apassivou-se. Fatigada da contínua acção do articular palavras ao vento. Refugiou-se nos bastidores. Reconhecia a importância do seu papel, sabia o quanto era fundamental, nessa peça de entendimento, que implica dar e receber, do primeiro ao último acto. No entanto, gastara-se! Antes do ponto culminante da comunicação. Unicamente.

Acordou cansada... guardaria, por algum tempo, na recusa dos ensaios, intensidades, alturas, inflexões, ressonâncias. Matizado de sentimentos?

Seria apenas voz, a preto e branco... na certeza da afonia.

Ensaio sobre o 'sujeito'...

[Graça]


Mais do que ensinar poesia, gosto de pensar que ensino cada um dos meus alunos a olhar para além das aparências... a aceitar a imaginação como água livre do pensamento, na recusa de barragens sociais preconceituosas... a sentir a palavra como concha que resguarda emoções, ideais, desejos, sentimentos, revoltas, dúvidas... vida. Mais do que ensinar poesia, gosto de pensar que ensino os meus alunos a amar os poetas, a amar a sua língua.

A poesia nunca apareceu nas minhas aulas como conteúdo amordaçado por programas desfasados da realidade, nem se vestiu unicamente de aspectos teóricos sobre noções de versificação. Não se limitou a representar o papel formal que explica o que é o verso, a estrofe, que recorre à rima perfeita-imperfeita, rica-pobre, cruzada ou interpolada no estilo aprisionado do sentir... Ao longo dos anos que permanecem comigo, os meus lindinhos habituam-se a conviver com a poesia, como se fosse uma linha paralela de todos os conteúdos e temas abordados em aula. Assim, nesse caminhar lado a lado, tentamos esbater essas auréolas negativas que se cristalizaram no estudo do texto poético.

No entanto, não abdico de alguns preceitos... há palavras que sabem não poder utilizar para falar do poema ["interessante", "giro", "bom"]; há termos correctos para falar do texto [um "verso" não é uma "estrofe", uma "estrofe" não é sempre uma "quadra"]; e há um "sujeito poético" que se expressa no texto [não confundir com o autor].

Ora bem, há dias, numa aula, um dos meus lindinhos, quando corrigido, porque não devia dizer "Ruy Belo, neste poema, quer...", perguntou: "Ó Professora, mas afinal os Poetas não sentem nada? É sempre esse 'sujeito poético'?". Momentaneamente, apeteceu-me rir. Também eu considero que é difícil abstrair o poema de quem o escreveu, e das suas próprias vivências. Mas parece que os poetas preferem ser vistos como "fingidores". Não estraguemos, então, a ilusão do poeta... falemos de um "sujeito" abstracto, e admiremos tão-somente a sua arte de amar as palavras. O próprio Pessoa escreveu um dia: "O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. Nada disto tem que ver com a sinceridade.[...] O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero do mundo." [Sabendo quem é Caeiro... estará a dúvida clarificada?]