No intervalo [muito pessoal]...

(foto de Luís)


Quando chegas sem avisar, libertas a tempestade do meu sentir... trazes o verde agreste no olhar, no sorriso o gosto do mar revolto.

Quando aportas no meu cais, amainas velas de prazer, jorrando calor e paz, desse olhar sempre penetrante. A luz, que de ti irradia, acende a noite mais escura... e a voz entoa palavras-cânticos na minha alma agnóstica.

Quando chegas sem avisar, ao meu castelo perene, abres uma brecha no muro... veda-la com amor primário.

Ensaio pela salvação...

(foto de Paulo)

Quando, na interrupção do palco escolar, experimento a falta das palavras, apresso-me a pegar num qualquer livro. E releio! Gosto de reler. Oscilar, como pêndulo de relógio antigo, entre a primeira interpretação e a descoberta de novas denotações conotadas.

Aconteceu-me pegar nessa sinfonia orquestrada pela batuta de Erik Orsenna, A gramática é uma canção doce. Mais do que uma alegoria sobre a importância das palavras, o livro é uma lição ternurenta sobre a relação de uma jovem com a "ossatura" da língua. Um processo de aprendizagem que culmina no respeito imenso por esse "reino das excepções" que é a gramática.

Quando retorno a um livro, nunca o abro da mesma forma. Desta vez, fui parar na parte em que a personagem principal visita o hospital das palavras. Palavras cheias de dores, provocadas pela acção inconsequente dos humanos. O Sr. Henry leva-a ao quarto onde padece, seca e pálida, essa pequena frase "Eu amo-te". Cansada de ser repetida sem significado genuíno, gasta de ser vestida de mentira, descolorida pela leviandade com que é proferida. Seria tarde para a salvar? Questiona a pequena Jeanne.

Fechei o livro. Sei como continua. Conheço o caminho até ao final. A imagem do hospital ficou subjugando o meu pensamento. Quantas palavras e quantas frases já maltratei, nos papéis que represento no meu palco real?

Na próxima incursão pelas minhas prateleiras, escolherei poesia...

Sem máscara...

(foto de Tinta)

Vou, por estes dias, mascarar-me de mim
...
disfarçar-me da essência que sou
...
vestir-me da realidade que represento neste meu palco.

Ensaio por um sonho...

(pintura de Fá Duarte - que mora, desde hoje, na minha parede)


Existia, certamente, um castelo por encontrar. Subsistia imponente e solitário, algures num tempo não vivido... escondido num labirinto verdejante... edificado sem muralhas aprisionadoras do propósito simples de existir.

Estava lá, sem dúvida, onde o Sol beijava telhados pontiagudos, namorando descaradamente uma Lua diáfana. As árvores de troncos ingentes bailavam no cintilar das estrelas. E o céu nunca marcava o dia ou a noite.

Era perfeito, o castelo. Pintado num caleidoscópio de arco-íris. No calor matizado, ansiava a chegada dos risos cristalinos de felicidade, dos olhares brilhantes de paixão, dos gestos impudicos de desejo...

Um sonho latente... na espera da realidade.
[obrigada, Fá]

Ensaio quente...

(foto de GMV - Museu da Electricidade)


Da frágua da língua, libertam-se palavras-labaredas...


desatam-se brasas incandescentes do dizer...

acendem-se sentimentos numa fogueira sem fim!

No intervalo...

(foto de GMV - painel no Pav. do Conhecimento)


pontos que, voluntariamente, reclamam o término. São finais. Sinais gráficos de uma condição que não permite a alegria exclamada... que não deixa espaço para a interrogação... que anula a hipótese da omissão intencional. Pontos finais. Que aniquilam a intenção de dizer.



Ensaio por uma "deixa"...

(foto de GMV)


Ao sabor dos dias, a cortina abre-se para representações únicas. No palco escolar, uma cena nunca se repete, ainda que a peça seja a mesma. Uma aula edifica-se, tantas vezes, no traçado momentâneo, timidamente delineado por esses aprendizes que anseiam arquitectar a vida. E eu deixo...

Entraram ainda sacudindo resquícios de uma tarde chuvosa. Os sorrisos traziam o calor de sempre. Naqueles meus alunos, por enquanto, o Inverno não perdura o tempo necessário para se tornar estação. "Vamos acabar a história, Professora?". Gosto de ler. Para eles. Andávamos de volta dessa peça O Colar, de Sophia. Era dia de terminar a história. Essa história que foram ouvindo, ao sabor de todos os papéis tornados forma pela voz da Professora. Sabiam também que, assim que eu acabasse a minha leitura teatralizada, teriam de escrever uma cena alternativa para aquele final que ainda não conheciam. A expectativa era grande. Afinal, na última aula, tínhamos deixado Vanina a sofrer a desilusão de um primeiro amor não correspondido, destroçado às palavras de Pietro. Personagens de uma vida ficcionada, que assimilavam como possível. Recomecei, quase no final da peça, vestindo o papel de Vanina: "Não, não há nada que falar. Não há nada para dizer. Eu morri sem dizer nada."

"Eu morri sem dizer nada" transformou a aula num querer dizer tudo! Ensaiaram explicações, esgrimiram argumentos, defenderam certezas... E pronto! A escrita ficou para outro dia...

Sempre que a cortina se fecha, sempre que a plateia se esvazia na escuridão deste Teatro, há uma luz que, teimosamente, incide bem no centro do palco... nasce nesses projectores-meninos que iluminam a minha vida.

Ensaio para uma Deusa...

(foto de Tinta)

Já, por várias vezes, escrevi, neste meu palco, que não gosto de dias convencionados. Nunca compreendi por que razão a sociedade considera premente recordar-me de que há crianças e paz, que há mães e pais, que há sida e diabetes, que há mulheres e Natal, e outros que tais. Todos os dias são somente dias de ser... na coexistência sem convenções.

Hoje, para mim, é dia da saudade. Como o é cada dia, desde o momento em que a minha Avó abandonou o meu palco. A minha Avó tinha nome de Deusa: Artemiza. No Olimpo da minha memória, visualizo a minha Artémis, vagando pela Natureza, envolta numa serena luz... sempre linda, meiga, plena de sentimentos que nenhuma aljava conseguiria guardar.

A minha Avó ensinou-me tanto. Desse tanto-alicerce da minha representação. Ofereceu-me os primeiros livros de encantar, contou-me histórias ditas em tom suave, ao fim da noite, para adormecer. Ensinou-me a ouvir rádio, a cozinhar, a costurar, a cantar os fados de Amália... A minha Avó tinha a mais linda voz que eu já escutei.

Nunca lhe ouvi uma palavra mais alta, ou zangada... tinha sempre um sorriso perfeitamente desenhado nas suas feições doces. Partilhava o seu ser magnificamente. Era Mãe! A Encenadora que qualquer actor almeja.

Um dia, essa doença de nome gélido e estrangeiro (Alzheimer) começou a apagar as memórias da minha Artemiza. Desvaneceu-se a memória de mim, também! Só o seu sorriso permaneceu até ao fim.

A minha Avó não tinha só nome de Deusa. Era uma Deusa.

[No dia que é hoje, a minha Mãe Artemiza cumpriria mais um ano de vida... dessa vida que nenhuma morte apagará em mim.]

Um sorriso para ti, querida Avó, que estarás, sem dúvida, recebendo os aplausos de um Olimpo rendido à tua inesquecível presença.

No intervalo...

(foto de Tinta)

No bailar constante do vento... agigantam-se memórias!

E nem o laborar incessante... do moinho da vida... as reduzirá a !