No intervalo...

(foto de Luiz)


"Há só cada um de nós como uma cave.
Há só uma janela fechada e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela."


Alberto Caeiro

Um elo quebrado...

(foto de Luiz)

Gosto de escrever. Brincar com as palavras, numa quase infantilidade de quem descobre, a cada instante, uma nova utilização para o seu brinquedo. Gosto de respeitar o seu poder e vesti-las de novas roupagens semânticas. Gosto de observar o papel branco que desafia, num acto provocatório, ao preenchimento alinhado de frases nem sempre de sintaxe perfeita e desejável.

Gosto de escrever. Particularmente, texto dramático. Esse texto estranho que existe só por si, amargurado, talvez... numa ânsia imensa de passar a Teatro! Só no palco, o texto dramático cumprirá o seu destino... só nesse momento único de encontro com o público se completará o ciclo da sua existência...

No entanto, hoje, tenho dificuldade em redigir. Não me apetecem ensaios. Nem representações gráficas.

Durante todo o dia, pairou sobre mim uma nuvem pesada e cinzenta. Daquelas que, quando olhamos, anunciam o desabar de uma torrente de água. Daquelas que proclamam, num silêncio opressor, a descarga de toda a energia natural, raiada de sentimentos humanos.

O meu dia reclamava uma despedida. Do meu elenco, sairia o pilar fundador da minha actividade docente. Evitei cruzar olhares. Agrilhoei sentimentos que urgia pronunciar. Fugi da banalidade de um adeus...

Se hoje me obrigassem a escrever uma peça, as personagens seriam todas grilhões de uma corrente forte. Cada elo, orgulhosamente seguro nessa irmandade do todo. O cenário mostraria a aprendizagem personificada num sorriso sempre compreensivo. A acção apresentaria o desenrolar de tantos momentos de vida partilhados, num acto único. (e a nuvem deixaria transparecer um raio de Sol!)

Mas não me apetece escrever. Não quero sentir a dureza do quebrar de um elo da corrente...

Também não me apeteceu dizer adeus... disse "até amanhã"... e marquei encontro, para todos os dias, no sítio do costume... dentro do meu coração!

Ensaio sobre a pressa (o verdadeiro)...

(foto de GMV)

Ocasionalmente, por muito que goste do meu palco, surge em mim uma vontade imensa de me retirar da "companhia", de não querer mais fazer parte do "elenco".

Vagueio, então, parceira única de mim, por aí. Sem pressa. Espraio-me no asfalto em busca do mar. Nunca soube explicar a atracção que o mar tem... um mar de Outono, liberto de gente, vazio de cores que não reclama. Um mar murmurante que me chama, azul da imponência que repousa na areia deserta.

Lá, onde o Oceano se junta ao Céu, sinto o tempo parar, nessa linha do horizonte por definir. É belo o mar... soltando bramidos de revolta interior... dispersando sentimentos pela espuma das pequenas vagas.

Por vezes, gosto de me sentir pequena no enfrentar da imensidão da água, na consciência do infinito do céu. Vagarosamente, fui ver o mar.

Não sei se o tempo reclamou... nem se alguém me procurou. Ali, na dança das ondas, desapareci o tempo necessário para repor a minha energia, para arrumar as minhas ideias, para explicar os meus sentimentos.

Recuperei-me. Sem pressa. Na sinestesia dos sons saboreados, das cores tacteadas, dos aromas sussurrados a maresia. Devagar, bem devagar, soltei os meus sentidos. Junto ao mar.

Agora escrevo, sem pretensões... só porque sim! E como diria o grande Lobo Antunes, porque "sou feito destas patetices que me desfiguram o perfil".

Amanhã regresso ao palco.

Ensaio sobre a pressa...

(imagem da net)


Quando saíres do quarto, fecha a porta devagar...

Por detrás do pano...

(Alma Mater - pintura de Teresa Ribeiro)

Quando o pano fecha, no final de mais uma representação, a vida retoma o seu curso normal. Despem-se roupagens pesadas, lavam-se sorrisos pintados, olha-se o espelho na ânsia que seja devolvido o verdadeiro EU.

Os projectores apagam-se e, no silêncio frio de uma sala vazia, as memórias ganham forma, assumem o papel principal.

Ora bem, o meu pano nem tinha fechado. Encenava mais uma aula, nesse papel que até gosto de Directora de Turma. O monólogo versava a conduta, o comportamento, a atitude individual que prejudica o colectivo. Braço no ar. Desabafo de uma das minhas lindinhas: "A Professora diz isso, porque nunca foi aluna!". A risada geral fê-la corar, na rápida certeza do disparate pronunciado.

A Professora nunca foi aluna? Respondi seriamente: "Tem razão, nunca fui aluna..." E tudo o mais que pensei, não disse. Nunca fui aluna, como quem é aluna agora. Sempre gostei de escola... sempre quis ser Professora. Fui aluna-esponja, de quem almejava reter tudo o que os professores, humildemente, me quisessem transmitir. Na minha memória, num espaço reservado de mim, tenho emoldurados cada um desses seres que foram os meus professores. Desde a primária, até à minha entrada no liceu. A cada contacto, num novo ano, a minha certeza ia crescendo. Queria ser Professora, queria a experiência de que, com cada palavra minha, um conjunto de jovens irrequietos pudesse pintar as páginas em branco do conhecimento. A cada nova disciplina, o meu gosto ia aumentando, o meu horizonte cada vez mais vasto. Cada nome, uma promessa: história, sociologia, antropologia, psicologia, relações públicas, jornalismo, filosofia... toda a humanidade, na expressão das Humanidades. Sempre quis ser Professora, mas, no dia em que a minha querida Professora de Literatura Portuguesa declamou o Manifesto Anti-Dantas, eu soube que seria Professora.

Da Faculdade, dessa vivência única na década de 80, guardo todos os nomes... tive sorte, eu sei... fui aluna de grandes Professores, grandes escritores, enormes registos de vida. David Mourão Ferreira, João Ferreira Duarte, Joaquim Manuel Magalhães, Mário Dionísio... todos homens, todos poetas... das Professoras, ficou, num lugar especial, Margarida Vieira Mendes, a cultura personificada.

"Tem razão, nunca fui aluna... sou uma eterna aluna!". Sempre quis ser Professora, para que a aluna que há em mim fizesse uma constante demanda pela "Alma Mater" da minha condição.

Hoje, sou Professora. E, por detrás do pano, recuso-me a despir o meu papel!

O segredo...

(O segredo - pintura de Teresa Ribeiro)

Quantas vezes, no resultado da mais pura reflexão, nos apetece uma simples confidência? Procurar um ouvido amigo e depositar, no mais fundo do outro, o que nos vai no pensamento. Um segredo! Um desataviado segredo, que, por alguma razão, ocultámos cuidadosamente. Porque não se deve dizer. Porque a sua génese reclama o ser escondido, o não ser partilhado.

Quantas vezes, as palavras queimam no desejo de serem pronunciadas, para que se tornem leves na nossa consciência. Pura ironia. Se é segredo, deve manter-se nessa condição. Guardado, ou se possível esquecido, nas profundezas da nossa memória. Isolado, para evitar contaminações indesejáveis. Opiniões, redundâncias, pareceres, conselhos... tudo viroses perigosas que urge impedir.

Umas vezes, o segredo envolve um outro. Alguém que nos confiou um desejo, uma vontade, um aspecto privado da sua tão pública vida. Deve-se velar por ele, pelo segredo, respeitando esse momento indescritível em que alguém nos fez depositário desse soprar ao ouvido.

Outras vezes, o segredo é nosso. Algo que não queremos divulgar, porque unicamente nosso. Mas a fraqueza existe, e lá vamos nós procurar um recipiente humano, na crença de que se manterá assim, a dois partilhado. Pura ilusão. O que nos moveu para a revelação do dito, será também o motor que levará a divulgá-lo a mais duas ou três pessoas, até que seja do conhecimento geral.

Um segredo. Aquilo que se deve cuidadosamente ocultar. Sei do que falo. Já fui tantas vezes o ouvido, onde se encosta uma boca que murmura a confidência. Alguns moram em mim, como se de mim fizessem parte. Outros pesam-me toneladas e lutam, no interior da minha consciência, para se libertarem. Resisto... no entanto, reconheço o quanto me desgasta o transporte de algo que não é meu.

E eu? Haverá segredos nos bastidores deste palco? Sim, mas egoisticamente não me apetece partilhá-los.

Não sei! Não me interessa...

(Rio Coura - foto GMV)

Neste meu palco, onde visto o papel de Encenadora de práticas lectivas, há dias em que, convictamente, percebo porque sempre quis ser Professora. São aqueles dias em que não há burocracia que estrangule o meu prazer... em que as metas e os objectivos são todos subjectivos... em que a surdez de quem manda não cala o meu sentir.

A aula começou com o lançar da proposta de produção de um texto colectivo. A receptividade costuma ser boa. Afinal, os meus lindinhos gostam de ver nascer no quadro, ainda preto, o resultado das suas contribuições, primeiro sugeridas a medo, depois entusiasticamente ditadas, na certeza de que conseguiremos um texto que não envergonhe ninguém. A colaboração de todos é obrigatória. O apagar constante, na procura da palavra adequada, ou na tentativa da sintaxe quase perfeita, é normal. Eles apreciam. Eu também.

No entanto, hoje não me apetecia um qualquer texto. Pretendia um poema. "Ohhh..." o desânimo chegou. "Um poema? Isso é difícil!" - argumentaram. Não me interessa! Será um poema. - retorqui.

Dificultei a actividade ao escrever, bem no alto, o título "O Colar". O colar? Um poema sobre o colar?

De repente, um braço no ar. "Professora, como definiria poema?". Por momentos, senti vontade de verbalizar o meu pensamento, longe de preceitos teóricos, armadilhado pela singela pergunta. Um poema? Não sei! Não me interessa... Dizem que o ser se revela no criar de um poema, transfigurado na desculpa de quem não consegue dizer. Dizem que o verso é defesa de quem só procura viver. Conta-se em estrofe marcada, arruma-se numa qualquer métrica de nada... O poema não é só saída, nem esplendor criativo, é o grito da alma ferida, onde o sentimento permanece cativo. Dizem que o ser se revela... Não sei! Não me interessa...

Claro que não pronunciei uma única palavra que revelasse o meu pensamento. Respondi que o poema seria definido no resultado da aula de hoje.

Iniciámos o trabalho... e, rapidamente, surgiram os dois primeiros versos de um poema com o título "O Colar":

Descubro nas ondas brancas
Cem pérolas de fantasia...

Pronto, o pior tinha passado. O entusiasmo voltou. O poema cresceu. E o meu dia ganhou o ornato de palavras encadeadas... não para colocar no pescoço, mas para gravar na minha alma.

Ensaio sobre lobos...




Costumo dizer aos meus alunos que um bom título deve obedecer a determinadas características. Afinal, ele pode ser a chave que põe a descoberto a polissemia de um texto.

No entanto, nem sempre é assim. Muitas vezes, quem escreve resolve trancar a porta com fechadura inviolável. Ao invés de orientar o caminho a percorrer por entre as palavras, prefere colocar as grades do difícil acesso. Nesses casos, chega-se ao final do escrito e nem se compreendeu muito bem o que se passou na mente do autor para intitular o seu texto daquela forma.

Serve o intróito para dizer que não vou falar de lobos. Apesar de reconhecer que esse mamífero selvagem merecia, sem dúvida, um qualquer ensaio. Mas não. Não me apetecem extinções, nem alcateias, muito menos uivos, ou olhares traiçoeiros.

Aliás, serve somente a introdução para assumir que não vou falar de nada... nada sobre ensaios, nada sobre palcos... não farei analogias gastas com a vida... omitirei personagens e papéis... passarei ao lado de cenas e actos repetidos.

Na verdade, só pretendia escrever que, hoje, por acaso, embati numa frase de Erasmo de Roterdão... e pronto! Imbuída dessa certeza de que existem aforismos intemporais... crente nessa veleidade que por vezes me habita... concebi que tinha sido feita à minha medida, a frase, entenda-se: "O lobo talvez mude a pele, mas nunca a alma."

Por momentos, senti-me uma loba... longe da sua alcateia, mas conscientemente cumprindo a sua alma.

Ensaio sobre felicitações...

Num passado algo distante, num longínquo dia sete, como o de hoje, numa tarde fria de Novembro, alguém me ofereceu um livrinho... Serve o diminutivo para expressar o meu sentimento primeiro pelo dito. Sou pelos livros! Bons livros! Livros que suportem leituras infinitas! Livros resistentes a tantas viagens de companhia! Livros concebidos pela Literatura, se é que me faço entender.

Ora bem, para além do "inho", o objecto de capa azul veio embrulhado na frase, também ela oferecida: Tem tudo a ver contigo! Fiquei desiludida por alguém considerar que a minha pessoa se reflectia num livrinho de capa azul. Mais tarde, compreendi as palavras. Afinal, o título ocupava quase toda a diminuta capa: Scorpio!

Nunca liguei muito a astrologia, não no sentido de vasculhar páginas de periódicos, na demanda irracional de saber se o meu dia iria correr bem... se o metal vil encheria os meus bolsos... se o homem da minha vida me atraiçoaria sem pejo... se no trabalho teria de entregar a minha ficha de objectivos individuais...

Nasci em Novembro. Sou Escorpião. E o livrinho continua a ser a minha cara. Aliás, numa atitude perfeitamente contrária à razão, considero que foi mesmo escrito para mim! Clarifico...

Em frases feitas, sem grandes ambições sintácticas, nem ornatos literários, lá vão surgindo as características de quem nasceu sob a influência desse signo fixo, (porque não mutável): adoram enfrentar dificuldades (acrescentaria que, às vezes, nem tenho hipótese de escolher!); têm grande capacidade de recuperação (eu diria que estou em constante e renovada recuperação!); são atreitos a paixões violentas (ou, no meu caso, só paixões... bem, pronto, paixões impetuosas!); interessam-se pelo profundo e pelo oculto (sim, sim, adoro e também por Pessoa!); são por vezes possessivos (bem, sem comentários!); são dotados de um sentido crítico muito desenvolvido (como adoro esse meu sentido quase obrigatório!); possuem uma vontade indómita (nem digo de quê!); impetuosos e magnetizantes (assumindo todas as consequências que daí advêm!)... e mais meia dúzia de aspectos de quem, como eu, gosta de aplicar uma boa ferroada... metafórica umas vezes, hiperbólica nas outras, e tantas ainda só perifrástica!

Como passar, então, indiferente por este espelho de mim? Mas... e quanto ao resto? Tudo aquilo que verdadeiramente sou, e não existe registado em livrinhos de série azul? Sou... sendo... assim...

Quanto ao Scorpio... prefiro a constelação... e a história mitológica que lhe está associada.

Nasci em Novembro, num dia sete, como hoje, sem sequer imaginar que a minha vida seria feliz... e felizmente repleta de livros... sem "inho"!

Ensaio sobre banalidades...

(Nogueira - foto de GMV)


Neste palco imenso, e por vezes tão vazio, da incomparável existência, assumimos calmamente os papéis que nos dão... ou então, fingimos que os criamos, concebendo personagens pensadas à medida do nosso sentir. Iludimo-nos no desejar de uma construção modelada, que resulta sempre em personagem-tipo! Na verdade, pretendemos apenas impressionar o nosso público, na avidez dos aplausos que nos impulsionarão de novo para o palco.

Não sei bem porquê, mas hoje apetecem-me banalidades, palavras ocas de sentido, pensamentos insignificantes, gestos perdidos por entre nada! Hoje, não quero a representação.

Queria, mesmo que por breves instantes, SER! Ser isto que sou desde o início, sem ensaios preparatórios do que não quero ser... queria a simplicidade da frase de António Lobo Antunes "Que lugar-comum sou."! Queria, no observar consciente de mim, a certeza de que sou sem-personagem... Queria, na imperfeição deste pretérito, transformar o meu papel num real indicativo.

Enfim... meras banalidades de mim.