No ensaio dos olhares



De todos os conteúdos da minha adorada disciplina, um dos que mais respeito é o texto descritivo. Gosto de o ensinar, gosto de relembrar os mestres realistas que, pelo olhar, nos deram a beleza das palavras.

No meio dos recursos, dos planos, dos pontos de observação, das figuras feitas estilo, ressalvo sempre a importância das palavras. Essas que nos darão, sem pudores, a limpidez do nosso olhar.

Ver os miúdos absortos no desafio é uma alegria antecipada. Adoro estas aulas, em que, a cada instante, a cabeça se levanta, e o olhar se fixa, querendo registar o momento.

Foram duas aulas dedicadas a esta técnica rica de dizer escrevendo. Cento e oitenta minutos de uma relação única com o papel, primeiro branco assustador, depois cada vez mais preenchido de palavras sabiamente escolhidas. Falo de miúdos que me chegaram sem fundações e que, pouco a pouco, vão construindo os seus alicerces vocabulares.

Primeiro o retrato... a escolha de alguém revelada unicamente pelas palavras. Os resultados são sempre uma incógnita, principalmente, quando o retrato escolhido é o da própria professora. Ouvir-me dita, envergonhadamente, pelas vozes baixas e rostos corados é só mais uma experiência. À medida que os ouço, tento perceber porque me vêem assim. Serei eu? Serei, talvez, vista por aqueles olhares. Memorizo algumas frases soltas: " delicada como uma jarra de vidro, perigosa como o trovão que rompe a noite negra..."; "os cabelos revoltos como o mar encrespado..."; "nela encontrava uma força da Natureza, uma força que deixava marcas no coração, era uma broca de sabedoria...". Mas a minha preferida, e desculpem lá o conteúdo do ensaio, foi a expressão "a filha da impossível superioridade...".

Pergunto-me se esta brincadeira das palavras, feitas em aula, não terá um pequeno fundo de verdade. Serei vista desta forma? O que verá um aluno, quando olha para o seu professor? Olhares, enfim, não mais do que isso.

Depois, a descrição do espaço, o momento em que saímos da sala e nos espalhamos no recinto escolar, para sentir, para ouvir, para cheirar, para olhar, para registar. É vê-los sentados no chão, encostados nos pilares, alguns deitados, fazendo surgir as palavras motivadas pelos sentidos. O que fica? Registos desses olhares: "sentada no arco-íris de pedra, via aquelas árvores, revestidas de mármore verde, abertas em ramos castanhos como o bronze..."; " os pássaros chilreavam como harpas, as ervas tremiam ao vento e as azedas rejubilavam de alegria..."; "o vento, um pouco frio, vinha ter comigo e cantava as mais harmoniosas melodias..."; " o vento baloiçava os ramos das árvores, ainda despidas, como uma mãe que embala com carinho o berço do seu filho...".

Bem, já disse algures que gosto de ser professora...nestes dias, noutros dias, dia após dia, em que no meu olhar crescem os miúdos, futuros adultos do amanhã.

Que cresçam amando, como eu, as palavras!

1 comentário:

Paola disse...

Eu sei, minha amiga, o quanto gostas da tua profissão. Se sei! E também o que sofres com ela... E sei que te dói, aqui, talvez mais além, o quererem restringir os teus olhares feitos de cores plurais, mesmo quando a tua cor preferida é o negro...

Não sei onde a realidade e a ficção se tocam... Mas não tenho dúvidas que a primeira é a fonte inspiradora ...

Um dia, quando puderes, vê Os Choristes... e verás como a nossa profissão é dura. Tão dura que apenas com paixão pode ser trabalhada... A tua paixão. A tua força.

http://br.youtube.com/watch?v=Lsyjk6M0VCc&feature=related

Também aqui, o professor ganhou, malgré tout!

Gros bisous